Saturday, September 28, 2013

O Capitalismo é Moral?

No ensaio Da Dignidade da Política, Celso Lafer mostra que Hannah Arendt localiza na contemporaneidade o aguçamento de uma crise descrita como a "lacuna" que se abriu - com o advento dos chamados tempos modernos - entre o "não-mais" e o "ainda-não", ou seja, a quebra, como ela diz, na continuidade entre o passado e o futuro.

Parte da originalidade da argumentação de Hannah Arendt é demonstrar que os grandes pensadores do XIX, diante do fato de que "os padrões e as categorias políticas que compunham a continuidade da tradição ocidental se tornaram inadequados", buscaram entender "a realidade histórica e os acontecimentos que criaram o mundo moderno" e fornecer novas "regras para a ação", utilizando, no entanto, ferramentas herdadas daquela mesma tradição. Da previsível obsolescência das ferramentas decorreu, segundo Arendt,  que o pensamento que Nietzsche, Kierkegaard e Marx nos legaram não se provou eficaz para "inserir" as perguntas relevantes no "quadro de referência da perplexidade contemporânea".

Sem dúvida, faz parte desse raciocínio a constatação arendtiana de que "pertence à própria natureza da condição humana o fato de que cada geração se transforma em um mundo antigo", ou seja, o envelhecimento e seu concomitante turvamento cognitivo para o que lhe é inédito são componentes indispensáveis do permanente movimento que garante que o mundo possa ser "salvo da ruína que seria inevitável não fosse a renovação e a vinda dos novos e jovens".

André Comte-Sponville, em seu O Capitalismo é Moral?, contribui para essa reflexão quando aponta um "retorno da moral" ao centro dos debates propriamente políticos à partir dos anos 80 do século passado e ao propor, como ele diz: "três explicações diferentes, complementares, pertencentes a três "durações" diferentes, a saber, uma breve, uma média e uma longa duração. O livro é do início da década passada e não presenciou as múltiplas "primaveras" dos últimos anos. Sinal, sem dúvida, de envelhecimento.

A seguir trecho em que Comte-Sponville trata da "breve duração".

O Retorno da Moral

Compreendamos primeiro do que se trata. Quando falo de um "retorno da moral" ou quando se fala disso na mídia, não quer dizer que as pessoas seriam hoje mais virtuosas do que eram seus pais ou avós. É um retorno da moral essencialmente no discurso. Não é que as pessoas sejam, de fato, mais virtuosas; é que, de moral, elas falam mais - e podemos emitir pelo menos a hipótese de que falam tanto mais quanto mais, a bem dizer, falta moral na realidade dos comportamentos humanos... É possível. Em todo caso, falam de moral. E esse retorno da moral na primeira linha dos discursos e das preocupações já é um fenômeno da sociedade que merece ser levado em conta.

Por que esse retorno da moral? Eu anunciava três explicações complementares, pertencentes a três durações diferentes... A primeira explicação que eu gostaria de lhes submeter pertence ao que um historiador chamaria de "breve duração": vinte anos, trinta anos, o espaço de uma geração.

1. DUAS GERAÇÕES, DOIS ERROS

De fato, parece-me que esse retorno da moral será percebido com particular nitidez se tomarmos certo recuo, especificamente se compararmos os jovens de hoje, os que têm uns vinte anos nestes anos de 1990-2000, com os jovens que éramos, muitos de nós, trinta ou trinta e cinco anos atrás, digamos, para dar uma data de referência, os que tinham uns vinte anos por volta de 1968. É o que se chamou de "geração 68". Faço parte dela; e se isso não me dá nem orgulho nem vergonha, guardo desse pertencimento algumas das minhas mais belas lembranças. Mas, afinal, a saudade, quando existe, não pode fazer as vezes da reflexão.

Há trinta, trinta e cinco anos, lembrem-se os que viveram essa época, com a moral nós geralmente nos preocupávamos muito pouco. A moda, naqueles anos, era muito mais o imoralismo, a libertação geral e irrestrita. Os mais filosóficos dentre nós reivindicavam Nietzsche: queríamos viver além do bem e do mal. Quanto aos que não eram filosóficos, contentavam-se com pichar os muros da faculdade - ou com ler, e quase sempre aprovando - os belos lemas de então. Vocês se lembram? "É proibido proibir" ou "Vivamos sem tempos mortos, fruamos sem limites".

Como era lindo, e que bom se fosse possível! Foram necessários uns vinte anos para compreender que não era. Muitos poderão se espantar por termos necessitado de tanto tempo (se bem que alguns tenham levado menos tempo que outros) e até que tenhamos podido acreditar, nem que por uma só primavera e com a desculpa da juventude, que era possível libertar-se a tal ponto de qualquer preocupação propriamente moral. Mas o que explica essa crença ou essa ilusão é que reinava naqueles anos, especificamente na juventude estudantil, uma ideologia particular, que eu chamaria de ideologia do tudo política. Isso não valia apenas para os militantes. Estes davam o tom, muito além do seu pequeno círculo, a toda uma geração. O apoliticismo, então, era quase inimaginável. O engajamento, quase uma evidência. Naqueles anos de 60-70, tudo era política, como dizíamos, e não só tudo era política (o que no fundo era verdade e continua sendo), como a política era tudo - o que é bem diferente (continuo acreditando que tudo é política, mas não creio mais que a política seja tudo). Na época, porém, era assim que víamos as coisas: tudo era política, a política era tudo, a tal ponto que uma boa política  nos parecia ser a única moral necessária. Uma ação nos parecia moralmente válida se fosse, como dizíamos, politicamente justa. Moral de militante, cheia de boa consciência e de entusiasmo. Mas será que ainda era uma moral?

Vejo meu melhor amigo daqueles anos, do curso preparatório para a École Normale Supérieure, me dizendo, com o olhar límpido: "Meu chapa, não tenho moral!" A estima que eu tinha por ele cresceu subitamente ouvindo isso... Era um rapaz encantador, e continua sendo. Não fazia mal a uma mosca (a não ser, talvez, a uma mosca de extrema direita). Mas a moral lhe parecia uma ilusão inútil e nefasta. Ele era ao mesmo tempo nietzschiano e marxista, como muitos de nós. Essa mistura duplamente contrária à natureza (um Nietzsche de esquerda! um Marx imoralista!) nos dispensava de interrogar demais. A moral? Ideologia servil e judaico-cristã. O dever? Idealismo pequeno-burguês. Disparávamos flechas incendiárias contra o estado-maior da consciência. Abaixo a moralina, como dizia Nietzsche, viva a Revolução e a liberdade! Ingenuidade dos jovens... Cumpre dizer que os mais velhos, aqueles que admirávamos, não faziam muito esforço naqueles anos para nos desenganar. O próprio Sartre havia renunciado a fazer uma moral. Quanto a Althusser ou Foucault, que eram mais importantes para nós, na época a simples palavra os teria feito sorrir. Deleuze celebrava Espinosa? Sim, e com que talento! Mas era para saudar nele, antes de mais nada, o "imoralista"... Era o ar do tempo, generoso e paradoxal: a moral - repressiva, castradora, culpabilizadora - parecia-nos imoral. Não precisávamos dela. A política a substituía e bastava para tudo.

Vinte anos depois, trinta anos depois, a mudança de cenário é espetacular. A política não interessa mais a muita gente, muito menos aos jovens. Quando ainda falam de política, na maioria das vezes é para debochar dela - porque agora só a percebem sob o ridículo aspecto que lhe dão os humoristas da tevê. Enquanto esses mesmos jovens que abandonaram em massa o terreno político empreendem um notável retorno a certo número de preocupações morais, muitas vezes rebatizadas, é claro (porque a palavra "moral" soa meio antiquada: os jovens preferem falar de direitos humanos, humanitarismo, solidariedade...), mas nem por isso deixam de ser morais.

André Comte-Sponville - O Capitalismo é Moral?

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