Thursday, June 15, 2023

... mais antiga que Heródoto


A História como uma categoria de existência humana é, obviamente, mais antiga que a palavra escrita, mais antiga que Heródoto, mais antiga mesmo que Homero. Não historicamente falando, mas poeticamente, seu início encontra-se, antes, no momento em que Ulisses, na corte do rei dos Feácios, escutou a estória de seus próprios feitos e sofrimentos, a estória de sua vida, agora algo fora dele próprio, um “objeto” para todos verem e ouvirem. O que fora pura ocorrência tornou-se agora “História”.

Mas a transformação de eventos e ocorrências singulares em História era, em essência, a mesma “imitação da ação” em palavras mais tarde empregada na tragédia grega, onde, como Burckhardt certa vez observou, “a ação externa é oculta do olho” através do relato de mensageiros, embora não houvesse absolutamente nenhuma objeção a mostrar o horrível. A cena em que Ulisses escuta a estória de sua própria vida é paradigmática tanto para a História como para a Poesia; a “reconciliação com a realidade”, a catarse, que segundo Aristóteles era a própria essência da tragédia, constituía o objetivo último da História, alcançado através das lágrimas da recordação.

O motivo humano mais profundo para a História e a Poesia surge aqui em sua pureza ímpar: visto que ouvinte, ator e sofredor são a mesma pessoa, todos os motivos de pura curiosidade e ânsia de informações novas, que sempre desempenharam, é claro, um amplo papel tanto na pesquisa histórica como no prazer estético, acham-se, naturalmente, ausentes do próprio Ulisses, que se teria enfastiado mais que comovido se a História não passasse de notícias e a Poesia fosse unicamente entretenimento.

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O CONCEITO DE HISTÓRIA – ANTIGO E MODERNO. Entre o Passado e o Futuro. Hanna Arendt

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