Saturday, July 22, 2023

"A autoridade que perdemos"

Hannah Arendt by Barbara Niggl Radloff, janeiro de 1958

O sintoma mais significativo da crise [da autoridade], a indicar sua profundeza e seriedade, é ter ela se espalhado em áreas pré-políticas tais como a criação dos filhos e a educação, onde a autoridade no sentido mais lato sempre fora aceita como uma necessidade natural, requerida obviamente tanto por necessidades naturais, o desamparo da criança, como por necessidade política, a continuidade de uma civilização estabelecida que somente pode ser garantida se os que são recém-chegados por nascimento forem guiados através de um mundo preestabelecido no qual nasceram como estrangeiros. Devido a seu caráter simples e elementar, essa forma de autoridade serviu, através de toda a história do pensamento político, como modelo para uma grande variedade de formas autoritárias de governo, de modo que o fato de mesmo essa autoridade pré-política, que governava as relações entre adultos e crianças e entre mestres e alunos, não ser mais segura significa que todas as antigas e reputadas metáforas e modelos para relações autoritárias perderam sua plausibilidade. Tanto pratica como teoricamente, não estamos mais em posição de saber o que a autoridade realmente é.

(...) admito como pressuposto que a resposta a essa questão não pode em absoluto se encontrar em uma definição da natureza ou essência da “autoridade em geral”. A autoridade que perdemos no mundo moderno não é esta “autoridade em geral”, mas antes uma forma bem específica, que fora válida em todo o mundo ocidental durante longo período de tempo. Proponho-me, portanto, a reconsiderar o que a autoridade foi historicamente e as fontes de sua força e significação. Não obstante, em vista da atual confusão, parece que mesmo essa limitada e tateante abordagem deve ser precedida de algumas observações acerca do que a autoridade nunca foi, a fim de evitar os mal entendidos mais comuns e assegurar que visualizemos e consideremos o mesmo fenômeno, e não uma série qualquer de problemas conexos ou desconexos.

Visto que a autoridade sempre exige obediência, ela é comumente confundida como alguma forma de poder ou violência. Contudo, a autoridade exclui a utilização de meios externos de coerção; onde a força é usada, a autoridade em si mesmo fracassou. A autoridade, por outro lado, é incompatível com a persuasão, a qual pressupõe igualdade e opera mediante um processo de argumentação. Onde se utilizam argumentos, a autoridade é colocada em suspenso. Contra a ordem igualitária da persuasão ergue-se a ordem autoritária, que é sempre hierárquica. Se a autoridade deve ser definida de alguma forma, deve sê-lo, então, tanto em contraposição à coerção pela força como à persuasão através de argumentos (A relação autoritária entre o que manda e o que obedece não se assenta nem na razão comum nem no poder do que manda; o que eles possuem em comum é a própria hierarquia, cujo direito e legitimidade ambos reconhecem e na qual ambos têm seu lugar estável predeterminado). Esse ponto é de importância histórica; um dos aspectos de nosso conceito de autoridade é de origem platônica, e quando Platão começou a considerar a introdução da autoridade no trato dos assuntos públicos na polis, sabia que estava buscando uma alternativa pra a maneira grega usual de manejar os assuntos domésticos, que era a persuasão (péithein), assim como para o modo comum de tratar os negócios estrangeiros, que era a força e a violência (bía).

Historicamente, podemos dizer que a perda da autoridade é meramente a fase final, embora decisiva, de um processo que durante séculos solapou basicamente a religião e a tradição. Dentre a tradição, a religião e a autoridade – cujas interconexões discutiremos mais tarde –, a autoridade se mostrou o elemento mais estável. Com a perda da autoridade, contudo, a dúvida geral da época moderna invadiu também o domínio político, no qual as coisas assumem não apenas uma expressão mais radical como se tornam investidas de uma realidade peculiar ao domínio político. O que fora talvez até hoje de significação espiritual apenas para uns poucos se tornou preocupação geral. Somente agora, por assim dizer após o fato, a perda da tradição e da religião se tornaram acontecimentos políticos de primeira ordem.

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QUE É AUTORIDADE? Entre o Passado e o Futuro / Hannah Arendt ; tradução Mauro W. Barbosa. São Paulo Perspectiva, 2016.

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