15 de agosto de 2020
O SABOR DAS MASSAS E DAS MAÇÃS
Não é preciso detestar ou gostar de Romero Britto para perceber um equívoco agregado ao debate nas redes sobre o episódio da maçã de porcelana jogada ao chão. O objeto que a dona do restaurante Tapelia destruiu não é a própria obra 'Big Apple' e sim apenas uma das virtualmente infinitas cópias produzidas em modo industrial pelo artista. Como foi demonstrado por Walter Benjamin em 1936, pode haver um regime de cópias 'autênticas' de certas criações artísticas. Uma tela pintada a óleo tende a ser 'irreprodutível' pela escolha técnica do pintor. Refazê-la significa pintar um segundo quadro, por mais idêntico ao primeiro que se consiga. Já uma fotografia é intrinsecamente 'reprodutível', não artesanal, pois a partir de seu negativo, ou arquivo de computador, pode ser copiada, ou melhor, multiplicada vezes incontáveis, sem com isso perder qualquer traço de sua identidade. Assim, rasgar uma das magníficas ilustrações de capa da New Yorker Magazine não é rasgar uma obra de arte, mas tão somente um exemplar da revista. Quebrar em pedacinhos um 'Kind of Blue' do Miles Davis não oferece qualquer risco à matriz original de onde saíram os milhões de discos prensados anualmente desde 1958. Botar fogo num daqueles livrões do Sebastião Salgado, picar com tesoura um rolo de filme com '2001, uma Odisseia no Espaço', explodir uma Livraria Cultura inteira, usar a folha de jornal com a charge genial da Laerte pra forrar o chão da lavanderia, nada disso atinge as 'obras' de quem quer que seja. Romero Britto, tendo por lastro um modo de reprodução celebrizado por Andy Warhol, mas elevando-o, ou talvez reduzindo-o a uma lógica de mercado totalizante, vende as obras que cria numa espécie de loja de souvenires. A 'Big Apple' pode ser adquirida pelo site em dois tamanhos. Um maior, com assinatura feita à mão, por $4.800,00. Um outro, menor e assinado 'digitalmente', por $360,00. A maçã que a protagonista da cena viral relata ter ganhado de presente do marido parece ser uma das grandes. Isso dá ao exemplar dela uma certa aura, um certo charme único, mas, o fato é que, tendo comprado a peça, ao quebrá-la, não deu ao artista Romero Britto, ou à sua obra, qualquer prejuízo. A funcionária da loja poderia tê-la substituído imediatamente buscando outra no estoque, caso quebrasse por acidente. Ainda que todo o estoque fosse destruído, o setor de compras da empresa poderia encomendar uma nova leva. Imagino, inclusive, que os clientes possam receber garantia em caso de defeito, ou algo semelhante. O que a Madelyne Sanchez fez em pedaços, ao fim e ao cabo, foi o afeto que disse nutrir pelo artista brasileiro. A agressão não atingiu ninguém a não ser o cidadão famoso, arrogante e rico que foi ao restaurante em frente à sua loja e 'pintou o caralho do macaco', como diz a molecada do Rio de Janeiro. E, tudo indica, esse era o objetivo principal da performance. Quem pode negar a legitimidade da atitude tomada por ela, goste-se, ou não? Se foi espetaculoso, ou não, premeditado, ou não, é outra conversa. O ponto aqui é: não estamos tratando de uma 'obra avaliada em 26 mil reais' de Romero Britto. O objeto de porcelana industrial não foi 'avaliado' como uma escultura de Rodin, ou um quadro do Nuno Ramos. Foi 'precificado' numa loja de Miami e quem não desconfiou que 26 mil reais é barato demais para um artista com a fama do Romero Britto cobrar por um 'original', tá distraído demais, vam'combinar. Não deixa de ser uma obra de arte, mas uma obra de arte 'na era de sua reprodutibilidade técnica'. Isso dá à Madelyne o direito inalienável de destruir seu exemplar. A 'Big Apple' continua intacta.
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