Sunday, August 06, 2023

6 de agosto de 2016

 Este é o poema de Carlos Drummond de Andrade que encerrou o show de abertura das Olimpíadas, ontem. É certo que, depois disso, aconteceram as delegações, a vaia clamorosa medida em 105 decibéis para o disenterino, o bis com escolas de samba e a presença de Anitta. A primeira parte, porém, apresentou unidade e o fechamento veio com um longo poema lido em português e inglês por duas damas do teatro, Fernanda Montenegro e Judi Dench. "A Flor e a Náusea" marca uma inflexão ativista na trajetória do gauche metafísico que Carlos sempre foi antes e voltaria a ser depois. Não há engano: o poema furou o chão do espetáculo mainstream que, necessariamente, uma cerimônia de abertura de Olimpíadas é. O espinho da "rosa do povo", repito, mirou o peito do vampiro Mixéu.


"Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se / Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico".

Não é muito, é uma "forma insegura" de resistência. Mas estava lá. Os golpistas não terão como fugir da poesia-flor que "nasceu na rua".


A Flor e a Náusea - Carlos Drummond de Andrade

Preso à minha classe e a algumas roupas, vou de branco pela rua cinzenta.
Melancolias, mercadorias, espreitam-me.
Devo seguir até o enjôo?
Posso, sem armas, revoltar-me?

Olhos sujos no relógio da torre:
Não, o tempo não chegou de completa justiça.
O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera.
O tempo pobre, o poeta pobre
fundem-se no mesmo impasse.

Em vão me tento explicar, os muros são surdos.
Sob a pele das palavras há cifras e códigos.
O sol consola os doentes e não os renova.
As coisas. Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase.

Vomitar este tédio sobre a cidade.
Quarenta anos e nenhum problema
resolvido, sequer colocado.
Nenhuma carta escrita nem recebida.
Todos os homens voltam para casa.
Estão menos livres mas levam jornais
e soletram o mundo, sabendo que o perdem.

Crimes da terra, como perdoá-los?
Tomei parte em muitos, outros escondi.
Alguns achei belos, foram publicados.
Crimes suaves, que ajudam a viver.
Ração diária de erro, distribuída em casa.
Os ferozes padeiros do mal.
Os ferozes leiteiros do mal.

Pôr fogo em tudo, inclusive em mim.
Ao menino de 1918 chamavam anarquista.
Porém meu ódio é o melhor de mim.
Com ele me salvo
e dou a poucos uma esperança mínima.

Uma flor nasceu na rua!
Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
Uma flor ainda desbotada
ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio, paralisem os negócios,
garanto que uma flor nasceu.

Sua cor não se percebe.
Suas pétalas não se abrem.
Seu nome não está nos livros.
É feia. Mas é realmente uma flor.

Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde
e lentamente passo a mão nessa forma insegura.
Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se.
Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico.
É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.

Publicado originalmente no Facebook

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