Friday, October 27, 2023

Sionismo e revolução política: uma entrevista com Michel Gherman


Em tempos de guerra, como diz a máxima, a primeira vítima é a verdade. Nós, que trabalhamos com informação, precisamos redobrar a atenção para não nos entregarmos a propagandas de lado a lado. Tenho notado que o uso da palavra "sionismo" talvez não seja correto do modo como está sendo feito. O debate público parece ter conferido à palavra uma conotação intrinsecamente ruim. Vamos começar pelo começo: o que quer dizer sionismo?

Essa é uma pergunta que parece simples, mas não é. Sionismo é a constituição de uma revolução política e identitária dentro da percepção do que é ser judeu. Eu gosto do que o autor Stuart Hall [1932-2014] diz quando afirma que identidade é sempre um conceito em rasura. Quando você pensa sobre ele é porque ele já não existe de maneira total. No final do século XIX, havia grandes questões na Europa e no Norte da África. Dentre elas a mais disruptiva era a do nacionalismo. Formação de estados, de sociedades e de identidades nacionais. Dentro dessa grande questão, havia outras, maiores ou menores. Uma delas era a chamada questão judaica.

As grandes questões vinculadas ao início da expansão imperialista e a consolidação de novos nacionalismos, junto com crises econômicas e avanço a leste da industrialização, levaram a uma questão subjacente a questão do nacionalismo: A questão judaica. Os judeus, naquele momento grupo vulnerável e vítima de discriminação em várias sociedades, eram das maiores vitimas das mudanças estruturais que balançavam a Europa. Crises econômicas e políticas, deslocavam massas de judeus pela Europa inteira. Calcula-se que mais de um milhão deles circulavam pelo continente europeu e pelas Américas. Aos poucos o antissemitismo aumentava, como uma reação a migrantes e refugiados no continente. A questão judaica passou a ser dividida em dois pontos: O que fazemos com os judeus e o que os judeus fazem de si. A resposta à primeira parte da pergunta foi complexa. Desde soluções liberais até socialistas. Judeus deviam ser integrados às sociedades e ganhar cidadania, por exemplo. Ou, de outro lado, judeus deveriam integrar-se às lutas operárias de seus camaradas operários não judeus. Claro, o Estado e a ordem instituída davam proeminência a perspectivas assim isolacionistas. Se os judeus deixarem de ser judeus, acaba a questão judaica. Mas não era verdade. A perspectivas integracionistas esbarravam no antissemitismo estrutural. Outra opção surgia no horizonte: tratar os judeus como ameaça. Mantê-los como cidadãos (ou súditos) de segunda classe ou livrar-se deles era uma das referencias que surgiam a partir da segunda metade do século XIX. Do outro lado, os judeus também tentavam resolver a questão judaica. A partir de suas perspectivas. Posições políticas se consolidavam. Desde perspectivas integracionistas (assimilação) até isolacionistas (ortodoxia). Nesse momento foi quando surgem várias das identidades judaicas modernas que conhecemos. Judaísmo como religião, judaísmo como cultura e, no caso do sionismo, judaísmo como nacionalidade. Uma resposta rápida seria essa: Sionismo seria compreensão do nacionalismo como nacionalidade. Dentro dessa percepção surgem várias correntes do sionismo, tenho um livro que explica esses detalhes ["O Início do Sionismo no Brasil", Editora Unifesp, 406 pgs]. Mas a pluralidade do sionismo é tão grande que há setores rivais que não se mantém sequer na mesma estrutura. O movimento sionista vai desde grupos de esquerda radical, que propõem uma revolução socialista árabe judaica em um Estado palestino / judeu confederados, até correntes de extrema direita ultra militarizadas. Com os desenvolvimentos históricos, o aumento do antissemitismo na Europa, a ascensão do nazismo e a guerra com os árabes palestinos, correntes específicas foram se hegemonizando. Dessas o sionismo trabalhista foi o que criou Israel como Estado e a partir do modelo de Estado territorial e nacional. A partir dos anos 1970, foi justamente o sionismo revisionista, de direita, que se fortaleceu e tornou-se hegemônico. Aos poucos, foi-se indo, com esse sionismo para perspectivas da extrema direita e é esse o governo que temos hoje em Israel. Entretanto, importante marcar, o sionismo sempre foi plural e com muitos tensionamentos entre grupos internos. Hoje a extrema direita sionista desqualifica a esquerda sionista, tratando-a como "alguém de fora do movimento", curiosamente faz o que a esquerda faz com os mesmos sionistas de esquerda. As opções concretas de resgate da vida com dignidade para palestinos e judeus da região estão, a meu ver, nos setores sionistas e pós sionistas da esquerda. Estes desconsiderados por reacionários que hoje estão no poder em Israel.

Estamos usando a palavra de forma equivocada?

Eu acho que estão usando de forma simplificada ou parcial. Ao se falar de sionismo sempre se usam referências da direita sionista. Fala-se de Theodor Herz (tido como fundador do sionismo e favorável e referências imperialistas) como figura absoluta ou da extrema direita no poder como referência máxima do sionismo. Isso fortalece a direita sionista e enfraquece as perspectivas progressistas do movimento. Há outra questão importante: entende-se o sionismo como um programa absoluto. Assim, tem-se a ideia de uma sociedade corporativa onde esquerda e direita funcionam de comum acordo em um simulacro de disputas e discordância. Essa perspectiva conspiracionista (filha de referências antissemitas) vê quaisquer disputas internas no interior de Israel como fingimento sionista. Ou mesmo conquistas cidadãs como acordos internos para propaganda liberal e não parte de esforços de grupos minoritários, aqui vem, por exemplo, o caso do pink washing que desconsidera resistência dos grupos LGBTQIA+ contra perspectivas reacionárias da sociedade israelense. Por fim, retira-se agência dos palestinos que estão em diálogo com o sionismo (de diversas formas) desde o fim do século XIX.

Você se considera sionista?

Cultural e politicamente, sou sionista. Estou na esquerda do movimento. Considero que a formação de um Estado Palestino com segurança e dignidade ao lado de Israel é parte dessa agenda. Considero também um horizonte de confederação palestina-israelense no futuro como possibilidade. Mas, mais que tudo, hoje considero urgente e fundamental o fim da ocupação militar e civil de israelenses nos territórios palestinos. Essas posições são, a meu ver fundamentais em meu sionismo. Claro, a direita sionista não vai concordar e a extrema direita sionista vai desqualificar meu sionismo. Por isso é importante o diálogo sobre isso com a esquerda brasileira.

Escutei você dizer num podcast que sua identidade mais marcada é a de ser judeu. O que essa dimensão de sua identidade confere de melhor e de mais bonito à forma como você se implica na vida?

Meu judaísmo é dialógico e plural. É o judaísmo da tradição oral. Da leitura criativa das fontes escritas. Meu Judaísmo inclui minorias, inclui debates, enxerga minorias como parte do todo. Meu judaísmo percebe a diáspora como referência de identidade, de criação e de pontes. Além disso, vê Israel como projeto universal e não de gueto isolacionista e supremacista. Meu judaísmo é da judeidade de Buber, Levinas, Albert Memi e Libovitz. Meu judaísmo é árabe- judeu como os Panteras Negras eram. É da resistência de [Mordechai] Anilewicz contra os nazistas no Gueto de Varsóvia. É o judaísmo de Shulamit Aloni [1928-2014] com as fontes judaicas na mão e com a revolução na cabeça. Meu judaísmo é de Hershel [Grynspan] ao lado de Martin Luther King marchando pelos direitos humanos. Meu judaísmo é o que exigiu que Yara Ivelberg fosse respeitada depois da morte como combatente contra a ditadura. O que se negou a enterrar Herzog, o jornalista judeu, como suicida depois de torturado e morto pelos heróis de Bolsonaro. Meu judaísmo fez com que entendesse o quão nazista Bolsonaro era e, desde o início, meu judaísmo me exigiu que eu me perfilasse ao lado dos jovens na porta da Hebraica denunciando o fascismo que se preparava para tomar esse país de assalto com a cumplicidade de suas vítimas históricas. Meu judaísmo chora muito os inocentes vítimas da barbárie do Hamas e os civis mortos pelos bombardeios em Gaza. Sou o que sou pelo meu judaísmo. Meu judaísmo não é apenas o da sacralidade espiritual, mas o que sacraliza as vidas em todas suas formas. Meu judaísmo é do cotidiano. Tem um debate rabínico em que se discute se alguém que não crê no Divino pode dirigir as rezas judaica. Esse é o judaísmo que me interessa. Meu judaísmo se constituiu lendo [o poeta palestino] Mahmud Darwish e [o poeta israelense] Yahuda Amichai [1924-2000]. Imaginando um encontro entre suas poesias. Meu Judaísmo irrita os fascistas, está no exílio de Espinosa e na voz de Shikma Bressler [cientista israelense]. É o judaísmo da comida árabe na casa de minha vó libanesa na praça Saens Pena e das sinagogas sefaraditas. É o judaísmo racional de Maimonedes [filósofo] e o judaísmo atávico e irracional de Arna no campo de refugiado de Jenin. Meu judaísmo é colérico como o dos profetas, que diziam que os reis estavam nus. É o judaísmo de sente cheiro de antissemitismo a quilômetros de distância e que vomita de nojo (literalmente) com racismo e homofobia. É um judaísmo que resiste pela perseguição aos de dentro e aos de fora. É judaísmo em hebraico. Mas também em português. Um judaísmo em Árabe e iídishe. Tudo ao mesmo tempo. Uma salada de tabule e Guefilte Fish [comida típica da culinária judaica da Europa oriental] no mesmo prato. Um judaísmo que pode sentir as dores da Inquisição e da Shoá, ao mesmo tempo que se dói com a escravidão e o genocídio negro dos corpos não enterrados por mais de 300 anos no subterrâneo da Gamboa. É do humor e da tristeza, da raiva e da calma. Um judaísmo de Jerusalém que vai a Ramallah. Um Judaísmo que espera poder receber os meus amigos de Ramallah em Jerusalém. Mas que, por enquanto, os leva para ver o jogo do Flamengo no Maracanã quando eles vêm ao Brasil.

Judith Butler vai argumentar, pelo que entendi, que é justamente sua judeidade que a impede de apoiar o colonialismo de Israel. Você concorda com ela? E o que seria a judeidade nesse sentido?

Ela está falando de um Ethos judaico, de um sentir-se judeu. Ela está falando do que Arendt falava em seu [livro] Rahel Varnhagen. Um lugar de quem está fora, mas parece dentro. Quase a dimensão do estrangeiro de [Georg] Simmel; essa é a judeidade da qual Butler falava. Mas acho mais que isso. Tem uma obra da Hanna Arendt, nos seus "Estudos Judaicos", em que ela fala do suicídio. Interessante não? Arendt fala do suicídio em um trabalho sobre identidade judaica. Acho que a interdição radical que a tradição judaica tem do ato de suicídio é muito mais suspeita do que se pode imaginar. Mas Arendt fala sobre um judaísmo estabelecido nos fortes laços com a diáspora. Investido de diáspora em seu âmago. Quando a experiência diaspórica é negada ao judaísmo europeu, quando o nazismo se produz como a "solução" para a questão judaica, aí nota-se, na pesquisa de Arendt, uma epidemia de suicídios entre os judeus europeus. Suicídios no sentido estrito e suicídios em vida. Butler, a meu ver, fala disso. De como é importante o ethos judaico para a tradição judaica. A cultura judaica, a judeidade, o ser judeu, a judeidade o sentir-se judeu de Albert Memmi [1920-2020]. Acho que Butler aponta que o judaísmo sem a judeidade é uma espécie de morte em vida. Uma espécie de suicídio. Nesse sentido, concordo com ela. Sou judeu e sionista justamente porque me oponho à colonialidade da ocupação. Me solidarizo com a luta palestina enquanto sionista, enquanto judeu no sentido amplo, e não apesar disso. Em 1967, Yeshayau Leibobitz, um judeu ortodoxo e sionista, foi prestar solidariedade contra o fechamento da universitade de Bit Zeit em Ramallah, cidade recentemente ocupada por tropas israelenses. A judeidade é um remédio contra o colonialismo, e a colonialidade da ocupação é um veneno contra o sionismo. Uri Ram, sociólogo israelense, chama isso de neo-sionismo, uma perspectiva autoritária e messiânica de identidade nacional judaica. O problema é que ela hoje se apresenta para fora e para dentro como sionismo verdadeiro. São hegemônicos. Por isso é tão importante apoiar o sionismo contra-hegemônico, o maior inimigo da atual extrema-direita israelense. Sobre Butler, permita contar uma pequena história. Um dia nos encontramos em uma padaria em São Paulo. Foi naquele período trágico de ascensão do bolsonarismo em que ela seria atacada pelos fascistas na cidade. Bom, duas coisas queria contar desse encontro. A primeira, uma curiosidade: perguntei o que ela comeria e ela pediu qualquer coisa sem camarão ou presunto. A segunda questão foi a importância, segundo ela, de sua militância ser na esquerda judaica. Ela disse que não conseguia encontrar seus parceiros de luta em posições antissemitas na esquerda. Dois pontos muito reveladores e importantes: A judeidade está presente na luta anti-ocupação, mas também em hábitos alimentares. E na sensação de traição que judeus de esquerda sentem no antissemitismo desse lado do mapa político.

Me parece que o grande problema das ações do governo ultra liberal de Israel não é o sionismo, mas o liberalismo. Não é mais por superioridade demográfica, mas por mercado, embora isso nunca seja colocado. Não sei se estou certa, queria ouvi-lo, mas essa linha de pensamento me faz entender a proximidade entre um governo nazi-fascista, como foi o de Bolsonaro, com lideranças do atual governo de Israel. Bolsonaro negou o Holocausto, posou ao lado de um homem vestido de Hitler, seu governo fez uso de símbolos da supremacia branca e nada disso incomodou o governo de Netanyahu. Você concorda com essa linha de associações?

Eu acredito que o governo atual de Nethanyahu seja de extrema direita. Em Israel isso se expressa em perspectivas messiânicas, supremacistas, fundamentalistas, eficientistas e militaristas. O judeu imaginário, que conhecemos tanto no Brasil, se reproduzindo em Israel. O judeu verdadeiro, o israelense verdadeiro na Israel da extrema direita, é branco, religioso fundamentalista, ultra capitalista (membro da tal start up nation) e militarizado. É o perfil do colono que vive nos territórios ocupados. Esse colono ocupou o imaginário publico em Israel. Não é casual que o ministro da economia seja membro de um partido de extrema direita religioso. Mas também não é casual que o ministro da segurança pública seja um politico claramente fascista acusado de terror. Não podemos esquecer que os inimigos deles são os palestinos, mas também os judeus liberais, de esquerda e seculares. A guerra interrompeu as manifestações contra Bibi Nethanyahu em um momento de sua radicalização. Tivemos casos em Yom Kipur que poderiam nos levar, não fosse os atos bárbaros do Hamas, a uma guerra civil entre esquerda e direita em Israel. Ou melhor dizendo, entre conservadores e liberais. Já não acredito no fascismo e no nazismo como elementos com coerência ideológica. Estou mais disposto a pensá-los hoje a partir do que Enzo Taverso chama de pós nazismo. Isso seria uma subjetividade nazista, uma percepção de mundo supremacista, branca, cristã fundamentalista, ultra liberal (sobrevivência do mais forte) e militarizada (milícia mais que exército). Nesse sentido, para tornar-se parte efetiva dos mundos dos fortes, a extrema direita israelense precisaria se aproximar da extrema direita mundial. Inclusive da extrema direita não nazista. É isso que ela está fazendo com decisões, dentro, com perseguição a judeus progressistas, palestinos e enfraquecimento do sistema legal israelense. E, fora, com aproximação forte com Boslonaros, Trumps e Orbans.

Tenho sentido que meus amigos da comunidade judaico-israelense que fazem parte da esquerda política brasileira estão desesperados por não ter a dor deles reconhecida diante dos ataques terroristas do Hamas. Fico imaginando que deve ser desesperador que um povo que passou por tudo o que sabemos, que carrega em sua identidade sofrimentos profundos a respeito da falta de reconhecimento da dor e da falta de apoio do mundo diante de um genocídio, tenha ainda que pedir por ele. Como mediar esse abismo que parece existir, embora não devesse, entre o pedido pelo reconhecimento de uma dor legítima e a necessidade de falarmos sobre a morte de civis palestinos?

Mas esse parece ser um problema de nossos tempos. A disputa das dores. Como se houvesse possibilidade e necessidade de comparações de dores. Entretanto, há mais do que isso, é como se a perspectiva política devesse ser estabelecida por esse shopping center de dores expostas nas lojas. Dores, cadáveres e sofrimento que estão pornograficamente à venda. Comparamos, olhamos e compramos. A bandeira que carrego tem relação com a dor que mais senti. Não com o projeto que pretendo estabelecer, não com as utopias que quero perseguir. Mas com a pedagogia da dor. E somente dela. Dor, morte e sofrimento como mercadorias em exposição. Agora, veja, meu projeto é inverter essa equação, estabelecer um projeto de transformação, sonhos e vida. Note, nem vou disputar com a direita e a extrema direita pânico, medo e sofrimento porque eles baseiam sua gramática política nisso. E ali eles ganham. Mercadores de transformação somos nós, de medo e ressentimento são eles. Genocídios e crimes coletivos não podem virar abraços de urso. Temos que superá-los. Produzir uma pedagogia anti-genocidária, e não o gozo com as palavras que se ligam ao genocídio. Aqui vai outra variável, serve como prática política. A extrema direita coloniza setores judaicos, transformando-os em brancos, militarizados, fanáticos religiosos e ultra capitalistas; ou seja, transformando-os no que o Ben Gvir é. Fazem isso em troca de, como todo processo de colonização faz, sentimento de maioria e poder. Enquanto setores da comunidade judaica batem palma para esse discurso, como aconteceu na Hebraica do Rio, outros setores se revoltam contra isso, como aconteceu na porta da Hebraica do Rio.

Qual o maior erro possível?

O apagamento dos que resistem e a transformação dos que estão dentro em "representantes verdadeiros da comunidade judaica". Isso seria a maior vitória do colonialismo da extrema direita. Do fascismo. O que parte importante da esquerda fez? Justamente isso. Passou por cima dos que resistiram e olhou para os que estavam dentro como porta-vozes da comunidade judaica. O que aconteceu no dia 7 de outubro foi parecido com isso. Um grupo reacionário e profundamente antagonista dos setores mais progressistas da causa palestina produziu um massacre sem proporções em Israel. Eu não tenho nome pra isso, porque não foi só um ato de terror. Foi mais que isso. Mortos com tons de crueldade, crianças na frente dos pais e mães, pais e mães na frente de seus filhos, idosos, pessoas com deficiência... um massacre. Me chamou a atenção a quantidade de pessoas com deficiência assassinadas. O Hamas pegou os vulneráveis como método. Isso sem falar dos jovens na festa, pessoas em Kibutzim. Um massacre. Não é possível relativizar. Essa dor é terrível. Centenas pessoas sequestradas, também crianças e idosos se destacam nesses números. Não é possível fazer nada a não ser solidarizar-se com as vitimas desse massacre. Pronto. Tenho visto que setores da esquerda acionam Fanon e anti-colonialismo para relativizar o massacre. Agora note, mais uma vez está-se produzindo o silenciamento das vítimas, dos progressistas, e justificando-se o massacre por conta da ação da extrema -direita no poder. Ou pior, produzindo-se uma perspectiva de continuidade que justificaria o assassinato de civis israelenses. Quem é o Hamas? Um grupo que negociava com Bibi [Netanyahu] até meses atrás. Um grupo que serviu se carcereiro dos palestinos nas políticas de Nethanyahu. Mas há mais do que isso. Hamas é um grupo que promoveu um golpe contra o Fatah [grupo político palestino] em 2007 e, logo depois, promoveu uma matança de militantes de esquerda palestina na Faixa de Gaza. Centenas, talvez milhares, jogados de prédios e enforcados. Apoiar esse grupo que negociava com a direita em Israel até há pouco, que tem um projeto reacionário e antissemita, que matou e exterminou palestinos que deles discordavam, um grupo que promoveu o massacre que vimos, é o abraço de urso de uma esquerda que se reivindica anticolonial mas que é apoiadora da barbárie. De outro lado, a resposta insana (pra usar as palavras do presidente Lula) do governo de Israel é a barbárie respondendo à barbárie. Vingança como política. Ausência de estratégia e barbárie como método. A morte e a destruição de homens mulheres e crianças de Gaza é de doer a alma de qualquer pessoa que não a tenha perdido. Hamas e Nethanyahu continuam dançando, de maneira mais radical do que antes. Sentir a dor de ambos os lados, fugir de uma lógica binária e emburrecedora, avançar em conquistar sonhos e investir na construção de uma solução justa e digna para palestinos e Israelenses é a única opção para uma esquerda se se pretende transformadora. O resto é entrar em agendas fascistas, reacionárias e fundamentalistas. O resto é o sucedido programado da esquerda.

A partir desse ponto em que estamos, o que você acha que poderia ser feito em nome de alcançarmos a paz e o convívio de duas comunidades que têm tanta coisa em comum, como a israelense e a palestina?

Para trazer uma resposta curta para uma questão longa e complexa: é preciso construir o diálogo possível. E esse diálogo não está nem com a extrema direita israelense, nem com o Hamas. É preciso interditar esses dois grupos. Ajudaria muito se, fora de Israel e da Palestina essa fosse a demanda central das esquerdas. Para além das demandas imediatas: retorno imediato dos reféns nas mãos do Hamas, fim dos bombardeios na faixa de Gaza e em Israel; precisamos fortalecer agendas positivas. Acordos e reconhecimento mútuo de Israelenses e Palestinos. Fim da colonização e da ocupação e construção de dois Estados em paz e segurança vivendo lado a lado. A derrota do Hamas e da extrema direita israelense será a vitória de perspectivas progressistas do mundo inteiro. Contraditoriamente a esse lamaçal moral que vivemos, temos uma oportunidade histórica de avançar nessa direção. A boa notícia é que as pesquisas de opinião mostram isso: 86% dos judeus israelenses querem a substituição desse governo. Por outro lado, 80% nos palestinos com cidadania israelense se colocaram contra o ataque do Hamas, em uma pesquisa recém divulgada pela Universidade Hebraica de Jerusalém. A situação na Cisjordânia não deve ser muito diferente. Devemos ajudar a dar voz a essa maioria pouco representada no atual quadro. Assim, interditaremos os grupos que promovem a tragédia onde israelenses e palestinos estão afundados e investirmos em mais sonhos e transformação, ao invés de ficarmos presos no luto e na vingança.

Milly Lacombe. UOL, 23/10/2023.

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