Friday, December 15, 2023

15 de dezembro de 2020


Em 1982, o professor Darcy Ribeiro disse: "Se nossos governantes não construírem escolas, em 20 anos faltará dinheiro para construir presídios".

Confirmando a profecia, a taxa de encarceramento a cada 100 mil habitantes passou de 61 pessoas em 1990 para 367,91 em 2019.

76,1% dos atuais 773.151 presos cumpre pena por delitos relacionados a drogas ou contra o patrimônio, atividades monopólio do crime organizado.

Apenas 11,3% do contingente responde por 'crimes contra a pessoa'. No entanto, em 2019 foram registrados 41.635 assassinatos (2.886 cometidos por policiais civis e militares em serviço e de folga).

Muita gente morre assassinada. Mas a cadeia tem poucos assassinos.

Esses números, à primeira vista, contraditórios, na verdade se explicam pela lógica da 'Guerra às Drogas'.

E como funciona a 'guerra'?

A polícia é responsável por cerca de 7% do total de mortes. Seu principal papel não é matar e sim gerenciar a 'guerra' - que não é guerra, mas um sistema.

A polícia decide quem vai preso e quem fica solto, mediante acordos financeiros: não há 'biqueira' sem 'arrego', nem 'arrego' sem 'biqueira'.

O encarceramento em massa, ao mesmo tempo em que 'abre novas vagas' nas ruas, coloca à disposição das facções milhares de 'soldados' que não sobrevivem nos presídios sem se filiar a algum grupo que exigirá fidelidade mesmo daqueles que voltam para casa.

O fluxo contínuo mantém acesa a disputa entre as gangues.

Esse é o principal motivo de haver pouca gente presa por assassinato. Quem mata, em breve também morre. E quem não morre não é investigado.

É de 'bandido pra bandido' que acontecem mais de 35.000 assassinatos computados ano a ano.

Os órgãos da lei deixam o caminho livre para que eles se matem uns aos outros.

Retornando ao início do círculo vicioso, a oferta de trabalho para os chamados 'postos baixos' do crime é ininterrupta, porque morre gente sem cessar.

Quem são os mortos e os matadores que alimentam essa contabilidade macabra?

Jovens entre 15 e 25 anos, homens, pobres, negros e periféricos em sua quase totalidade.

Aqueles alunos das escolas que não foram construídas, como previu Darcy.

O panorama está longe de ser estável, ou previsível. Por exemplo, enquanto as três maiores facções do narcotráfico estão em 15,4% do Rio de Janeiro, as milícias já controlam 57,5% do território do município. 'Modelo de sucesso' que tende a ser transplantado para todo o país.

O que mudou, além do assombroso crescimento de mortos, presidiários e organizações criminosas?

O debate.

A defesa da escola como a principal alternativa contra o genocídio da juventude negra caiu num quase esquecimento, a partir da virada do milênio.

A lógica da 'Guerra às Drogas' passou a se retroalimentar e as principais vítimas são agora consideradas quase unanimemente os culpados.

Mídia e igrejas fundamentalistas cumpriram papel determinante, ao jogar para o campo da moral um fenômeno que decorre de problemas estruturais, econômicos, de raça e de classe.

Nos anos 80 do século XX era comum reconhecer que o crime alicia os jovens em situação de vulnerabilidade. Que o adolescente de periferia é facilmente cooptado para aqueles chamados 'postos baixos' do tráfico e que tal situação, por levá-los em grande número à morte, é uma questão de Estado, desafio para a saúde pública, ou, como na síntese brilhante de Darcy Ribeiro, exige intervenção dos governos.

Para o pensamento conservador de recorte fascista, a equação está resolvida. Não existe genocídio da juventude negra e periférica, porque só ingressa no crime 'quem quer'. A polícia, por sua vez, tem, como o governador interino do Rio costuma dizer, uma 'missão'. As vidas ceifadas são 'efeitos colaterais', plenos de justificativas, ainda que 'a se lamentar'.

Edson, que tinha 20 anos e era aluno do ensino médio? Jordan, de 17 e que pensava em seguir carreira militar? Nas palavras do porta-voz da PM, foram mortos em "área perigosa" de Belfort Roxo "por conta de uma ação extremamente errada" que "infelizmente" colocará "em risco" as carreiras dos dois "jovens policiais" que os executaram.

Emilly Victoria e Rebecca Beatriz, de 4 e 7 anos, mortas em Duque de Caxias, cujas famílias receberam daquele mesmo governador interino "solidariedade e orações" por intermédio de um... tuíte?!?

São todos 'acidentes de percurso' numa 'guerra necessária'. Só resta às autoridades 'sentir muito', até que o último criminoso seja exterminado.

Paira um ensurdecedor silêncio sobre os túmulos dos meninos do crime. Suas famílias são impedidas de pranteá-los - é uma regra 'na quebrada'. A sociedade se ocupa cada vez menos deles. Mesmo as odes que cantavam suas sinas não chamam mais a atenção. O menino de 13 anos que "barbarizaram com mais de 100 tiros", da letra do Aldir. O 'guri' do Chico, que levava presentes roubados para a mãe. Ou o 'vapor barato, mero serviçal do narcotráfico' encontrado na 'ruína de uma escola em construção' da sugestiva Fora da Ordem, do Caetano. Velhas canções.

Vez por outra o bloqueio é furado. O garoto crivado de balas na cruz do desfile da Mangueira. A Pietá do Grito dos Excluídos em Brasília com seu Jesus morto a tiros. Várias perfurações indicando que os disparos encontraram o destino original, o 'bandido' merecedor da morte. Sem desperdício de munição. Sem balas 'perdidas'.

Enquanto o Brasil não recolocar o genocídio da juventude negra e periférica e sua solução mais efetiva - a escolarização - em pauta, sem pudores, falsos moralismos, ou temor da reação conservadora, veremos crianças inocentes, jovens trabalhadores, pais de família e tantos outros brasileiros sem qualquer ligação com o crime tombarem como tombam os 'vida loka'.

Um país que deixa morrer 30 mil jovens cidadãos a cada ano e que os trancafia aos milhares, como se não fosse isso um gigantesco problema coletivo, não tem condições de avançar em qualquer área.

Não nos pode causar surpresa o descaso com que morrem centenas de pessoas diariamente há meses na pandemia. O corpo morto no Brasil comove muito pouco.

'Não é problema meu'.

O corpo morto, no Brasil, é sempre o corpo 'do outro'.


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