Sunday, February 11, 2024

Polícia no morro

 Transcrito de O GLOBO. 31/05/2022. Atualizado 05/08/2022.

O compositor Cartola no chão, diante de viatura, após ser agredido por policial — Foto: Eurico Dantas/Agência O GLOBO

Havia mais de 200 policiais na Ponte Osvaldo Cruz, perto da Ilha do Fundão, às 6h50 daquela sexta-feira, 20 de fevereiro de 1976. Todos achavam que participariam de alguma operação na Ilha do Governador, ali perto. Mas o ponto de encontro fora marcado naquele local da Zona Norte apenas para evitar vazamento de informações sobre a verdadeira missão a cumprir.

Por volta das 7h, a tropa recebeu ordens para tomar o rumo do Morro da Mangueira. O objetivo da chamada "operação arco-íris" era prender criminosos na favela vizinha ao bairro de São Cristóvão, mas a ação ficaria marcada por detenções sem justificativa e por agressões contra a família de Agenor de Oliveira, o compositor Cartola, que chegou a ser esbofeteado por um agente de segurança.

Antes de subir o morro, os policiais ouviram de delegados a orientação para tratar os moradores da favela "com a máxima urbanidade". Minutos mais tarde, começaram a efetuar prisões sem explicação. Eram tempos de ditadura militar. Todos que não tinham carteira de trabalho assinada no bolso eram logo amarrados uns aos outros, pelas mãos e o pescoço, e levados a camburões numa situação que lembrava o transporte de escravizados até o século XIX.

Moradores da Mangueira presos e amarrados pelo pescoço por não ter carteira de trabalho — Foto: Eurico Dantas/Agência O GLOBO

Filho de Cartola, Ronaldo Silva de Oliveira foi abordado e também estava sem carteira profissional. De nada adiantou dizer que era funcionário público. Alguém o apontara como motorista do assaltante Antonio Branco, bastante procurado na época. O filho do sambista até confirmou que havia dirigido para o bandido uma vez, mas só porque estava sob a ameaça de um revólver.

Rapidamente, moradores que acompanhavam a ação disseram que aquele era o filho do célebre compositor, algo que foi logo confirmado por Euzébia Silva de Oliveira, a Dona Zica, mulher do artista. Mas, em vez de ouvir a moradora, os policiais começaram a empurrá-la em direção ao camburão, com a intenção de levá-la junto.

Cartola foi chamado, mas o baluarte da Mangueira, então aos 69 anos, acabou levando uns tapas no rosto enquanto argumentava. A certa altura, um delegado tentou apaziguar os ânimos. O sambista, indignado com toda aquela situação, dizia que não podia admitir a agressão sob a justificativa de que "enganos acontecem".

Moradores amarrados pelo pescoço por não ter carteira de trabalho, na Mangueira — Foto: Eurico Dantas/Agência O GLOBO

Enquanto o compositor descia o morro em direção ao asfalto, para acompanhar o filho até a delegacia, alguns moradores cantarolaram versos da então recém-lançada canção Meninos da Mangueira (Sérgio Cabral e Rildo Hora), em que Cartola e Dona Zica são homenageados. O delegado recebeu o sambista em sua sala, na Delegacia de Vigilância Norte, cercado por curiosos. Horas mais tarde, Ronaldo Silva foi liberado sem nenhum pedido de desculpas a ele ou a ninguém da família.

De acordo com a reportagem d'O GLOBO publicada no dia 21 de fevereiro daquele ano, entre os 60 homens detidos durante a força-tarefa, apenas um tinha contra si uma condenação na Justiça. Os outros 59 presos se mostravam preocupados com a informação de que só seriam liberados depois do carnaval. Mas o diretor do Departamento Geral de Polícia Civil, Sérgio Rodrigues, que considerou a "operação arco-íris" um sucesso, garantiu que só ia ficar preso "quem estiver devendo".

Cartola conversando com delegado após operação abusiva na Mangueira — Foto: Eurico Dantas/Agência O GLOBO

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