Tuesday, March 05, 2024

5 de março de 2021

O ETERNO RETORNO

Aconteceu no início e voltou a acontecer agora. Pessoas de mais alto poder aquisitivo, moradoras dos bairros centrais, trouxeram o vírus para as grandes cidades na virada de 2019 para 2020. Ocuparam os leitos hospitalares, motivaram a criação de normas de distanciamento social e se fecharam em casa.

Para atendê-las em home office, outras pessoas, de mais baixo poder aquisitivo, moradoras dos bairros periféricos, continuaram em suas rotinas de transporte público lotado e expedientes de oito horas de segunda a sexta.

Em questão de meses a matemática de transmissão da doença devastou as quebradas e seguiu para todos os interiores do país. Enquanto isso, o Centro havia criado condições para uma vida bem próxima do normal.

Estabeleceu-se, assim, um equilíbrio de filme catástrofe. Curva de mortes achatada no alto e queda muito lenta, mas constante. Atmosfera de suspensão. Esse quadro perdurou por meses e permitiu q governadores e prefeitos iniciassem protocolos de retomada da atividade econômica. Ficou muito parecido com o Brasil q a gente sempre conheceu: o perigo é iminente, mas mantido a uma distância segura dos ricos.

Foi aí q aquelas mesmas pessoas de mais alto poder aquisitivo, moradoras dos bairros centrais, decidiram celebrar a vida nas festas de fim de ano. Pouco depois viria o Carnaval. O Carnaval, inclusive, deixou claro a força da autoridade constituída durante a pandemia. Blocos, sambódromos, Circuito da Barra, Galo da Madrugada, simplesmente não existiram. Milhões de foliões foram impedidos de aglomerar. Por determinação do poder público. 'Simples assim'.

As festas, porém, pipocaram por toda parte, de dezembro a fevereiro. Veja a mórbida lógica do apartheid à brasileira: pancadão e botequim nos Grajaús da vida já haviam sido assimilados pela contabilidade do 'novo normal'. Aconteceram ao longo de inúmeros finais de semana para divertir as mesmas pessoas q encaravam o trem lotado durante os dias úteis. A vida social das periferias não interferia na estatística de 1000 mortes diárias do segundo semestre de 2020. A 'média móvel' manteve-se estável, lembrava-nos o famoso Consórcio de veículos de imprensa.

Festas clandestinas custam caro. Acontecem em barcos, sítios, praias e casarões afastados. Programa de condomínio. Não é à toa q os hospitais q estão colapsando primeiro sejam os da rede privada. Os caríssimos, como Einstein e Sírio, e os q atendem planos de Saúde de custo médio.

Não é difícil prever os desdobramentos dessa volta da espiral. A nova alta da curva encontra o país já inteiramente contaminado. O movimento centro-periferia está acontecendo muito mais rápido. A variante de Manaus se espalhou por toda parte, um oferecimento do general Pazuello q, depois de deixar a situação atingir níveis críticos no Amazonas, determinou a transferência de pacientes graves para outros estados sem nenhuma precaução.

Se demorar demais, as vacinas deixam de garantir imunidade coletiva e passam a contribuir para o aparecimento de cepas ainda mais violentas, resultado do convívio entre vacinados e não vacinados.

O país criou um consenso: não é possível fazer lockdown.

Traduzindo: uma parte da população necessariamente vai permanecer nas ruas para q a outra trabalhe remoto.

O Nicolelis prevê q atingiremos a marca de 3000 mortes por dia nas próximas semanas. Esse número vai aparecer nas bordas do mapa das cidades. O movimento se repete. As classes médias e altas vão concentrar seus esforços em adquirir novas e melhores máscaras. Preste atenção no moço da entrega do Magazine Luíza. Pode ser a primeira e última vez q a gente vai vê-lo vivo.

*

Na imagem, o ‘Homem da Meia Noite’, símbolo do carnaval pernambucano, passeia sozinho pelas ladeiras de Olinda, 2021. © Ivanildo Machado. 

No comments: