Friday, March 01, 2024

Em 'defesa' dos neopentecostais: ou apenas para superar os chavões

Ronilso Pacheco / Colunista do UOL

01/03/2024

Camila Svenson / UOL

Todos nós, brasileiros, desde o último domingo, 25 de fevereiro, fomos alcançados por algo sobre o ato convocado pelo pastor Silas Malafaia e o ex-presidente Jair Bolsonaro.

O ato tinha a intenção de demonstrar o apoio de bolsonaristas ao ex-presidente, embora fosse convocado como um ato de defesa do Estado Democrático de Direito. Nas redes sociais, assim como nas análises da cobertura jornalística na grande imprensa, a religião parece ter dado o tom definitivo ao ato.

Fomos bombardeados por imagens de evangélicos marchando enquanto cantavam hinos da Harpa Cristã e saudavam a pátria. Pessoas com olhos fechados concentradas em orações pelo país e abençoando Bolsonaro.

Vimos o discurso de Michelle Bolsonaro, com palavras "proféticas". E, claro, vimos as idosas que ostentavam orgulhosamente a bandeira de Israel. Elas foram o símbolo máximo da ostensiva presença dessa bandeira. Isso porque, segundo as idosas, "Israel é uma nação cristã".

O que foi visto em seguida, já no próprio domingo à noite, foi uma enxurrada de análises que, embora diferisse em termos de ênfase, se assemelhava na identificação de um "culpado": as igrejas neopentecostais. Foram delas, diziam as análises, a participação determinante no ato de Bolsonaro. Afinal, diziam, foi Silas Malafaia quem convocou.

O ato bolsonarista do último domingo mostrou que parecemos estar todos, senso comum e "especialistas", capturados pelos nossos vícios elitistas e racistas. Esses vícios significam a interdição da possibilidade de compreendermos a complexidade do buraco para onde realmente estamos indo (ou já estaríamos). E, mais do que isso, os atores reais que estão por detrás de nossa crise.

Neopentecostal tornou-se "a resposta", o coringa para situações como a do último domingo. Grande parte dos jornalistas, analistas e "especialistas" estava convicta de que o ato bolsonarista, com cenas profundamente religiosas, foi assim devido à adesão e ao protagonismo dos "evangélicos neopentecostais".

Era isso, até que a pesquisa do Monitor do Debate Político no Meio Digital, da USP, coordenada pelo professor Pablo Ortellado, revelou um desconfortável resultado: a religião de 43% dos manifestantes entrevistados no ato é católica, e 29%, evangélica.

No trio elétrico Demolidor, ao lado de Bolsonaro e Malafaia, estiveram o senador Magno Malta, o deputado Nikolas Ferreira, o deputado Sóstenes Cavalcante, além, claro, da ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro. Estamos falando de três evangélicos batistas, portanto, não (neo)pentecostais, e dois assembleianos, pentecostais. Em outras palavras: não havia liderança "neopentecostal" no trio.

A pesquisa do grupo da USP também trazia um recorte de raça (65% do público se declara branco; 26% pardo; 5% preto) e escolaridade (6% respondeu ter ensino fundamental; 26% ensino médio; 67% ensino superior).

Não são raras, nem inacessíveis, as pesquisas que demonstram como os chamados neopentecostais estão na base da pirâmide social em todos os aspectos. Eles são majoritariamente negros e moram em periferias. Nenhum trecho de vídeo, seja nas redes sociais, seja nas matérias de TV, mostrou público com este perfil majoritariamente. A pesquisa confirmou o que, a olhos nus, já era óbvio.

Os neopentecostais são o grupo cristão com os membros mais pobres. Diferentemente das lideranças das megaigrejas milionárias, muitos pastores e pastoras pentecostais fazem "dupla jornada" com seus trabalhos, que vão desde um funcionário público médio à labuta do pedreiro, do gari e da doméstica. Muitos, portanto, vivem ou de "biscates" ou na dependência da ajuda de sua própria congregação. Estava nítido que esta gente não estava lá. Então, quem estava no ato?

Estava lá uma maioria branca (neopentecostais são majoritariamente pretos e pardos), homens mais velhos/idosos (neopentecostais são majoritariamente mulheres negras de periferia) e com algum nível superior (neopentecostais são majoritariamente pessoas de escolaridade de nível fundamental, médio e técnico).

Este artigo é uma tentativa de explicar que as análises malfeitas, orientadas por um preconceito e um racismo implícito, por parte daqueles que se colocam a pensar a realidade brasileira neste momento, podem nos tornar mais frágeis às estratégias da extrema direita, do fundamentalismo religioso e de espertalhões como Silas Malafaia e Edir Macedo. É hora de "evangélicos neopentecostais" deixar de ser a resposta fácil para descrever a força e a sobrevivência do bolsonarismo.

O governo Bolsonaro, apesar de sua ampla adesão do segmento evangélico, não governou com neopentecostais. Ele governou com evangélicos ditos "tradicionais" e um contingente do grupo chamado no meio evangélico de "reformados", ou calvinistas, por serem adeptos da teologia de João Calvino, inspirador do presbiterianismo.

O Ministério da Educação não foi ocupado por um neopentecostal, mas por um presbiteriano. O Ministério da Justiça foi ocupado por um presbiteriano, não um neopentecostal. O ministro-chefe da Casa Civil de Bolsonaro foi um luterano, não um neopentecostal. Damares Alves, uma batista pentecostal, recheou o seu Ministério dos Direitos Humanos com batistas calvinistas, e não neopentecostais. Ernesto Araújo foi um ministro de Relações Exteriores profundamente católico fundamentalista, e não um neopentecostal.

Por outro lado, vale dizer que, se Lula teve grande parte dos seus votos oriundos da classe mais pobre da população, ele teve necessariamente os votos dos evangélicos pentecostais que estão na base da sociedade, nas periferias, e associam Lula com os benefícios sociais que os contemplaram. Vale dizer que movimentos sociais como o MST e o MTST possuem hoje, nos seus assentamentos, um núcleo evangélico pentecostal que se torna cada vez mais influente na luta.

Usar "neopentecostais" como coringa para responder a tudo o que não é explicável sobre a força do bolsonarismo é uma postura medíocre e preconceituosa. Principalmente porque "neopentecostal" não é identidade religiosa. É uma categoria de análise que nasce nas ciências sociais.

Se você perguntar a qualquer evangélico qual a sua denominação, ele te dirá, orgulhoso, que ele é batista, presbiteriano, calvinista, luterano, metodista ou pentecostal. Nenhum, absolutamente nenhum, te dirá "neopentecostal".

No 25 de fevereiro, num ato de afronta explícita à democracia e à laicidade do Estado, nós testemunhamos o que há de mais atual no mundo quanto à ameaça à democracia: o nacionalismo cristão (assustador), a ideia do Israel imaginário (poderosíssimo e não restrito aos religiosos) e o fundamentalismo religioso (vivo, e não restrito aos evangélicos) e uma classe média conservadora ressentida, junto a uma classe trabalhadora desesperançada.

No caso do Brasil, acrescente a insistência do antipetismo, que continua forte e com muitas faces na mídia e na elite econômica do país.

O fato é que o bolsonarismo está vivo, ele tem seus adeptos e ignorar isso apenas prejudica uma leitura coerente e assertiva. Honestamente, os chamados neopentecostais são uma parte ínfima disso.

Se você se horrorizou com as "tias" evangélicas com a bandeira de Israel, eu te diria que elas são inofensivas diante do projeto de poder político e cultural inspirado no "Israel imaginário" que vem de igrejas tradicionais que nem sequer expõem uma bandeira israelense em seus templos.

O apoio evangélico a Bolsonaro continua grande. É verdade. E é por isso que devemos olhar para isso com o enquadramento correto. Isso inclui olhar para o fato de que (se assumindo ou não como tal) muitas igrejas e lideranças com o perfil chamado neopentecostal estão nos territórios periféricos destilando intolerância e violências contra terreiros e fiéis de matriz africana.

Muitas destas igrejas estão nos presídios, dominando a assistência no sistema prisional e impedindo a ação de outras religiões ou mesmo outras igrejas. Este é um problema real, assim como a Igreja Universal vem aparelhando policiais militares nos seus cultos. É para isso que devemos olhar. E não para um espantalho que explica, sozinho, a força do bolsonarismo.

É fazer isso certo ou continuar cultivando likes do senso comum, mantendo ideais de preconceitos, enquanto a extrema direita vai ganhando terreno ao "acolhê-los" como vítimas de uma hostilidade por parte dos "sabichões" e "iluminados" que não respeitam sua fé.

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1 comment:

Leituras said...

Ronilso, talvez para não atrapalhar a própria linha de raciocínio, deixa de parte o periférico bolsonarista que não podendo ir à Paulista (é caro, é longe, demanda uma capacidade de se misturar com os mais ricos que, o periférico sabe, será presença dominante, e mesmo, no limite, o olhar enviesado que recebe da polícia é renitente, entre outros), se sente representado pelos mais ricos que vão.

A identificação com o 'lado de cima' da pirâmide é o grande enigma, inclusive, nessa população. A velha ideia da 'servidão voluntária' aparece para quem se pergunta o que diabos explicaria a existência de 'pobres de direita'.

O bolsonarismo sabe usar as simbologias. Ícones com os quais qualquer um, independente de sua realidade social, pode se apegar. É uma ideologia altamente midiatizada.

A ausência do periférico não significa ausência de ideologia nas periferias. Talvez seja pior: longe do momento 'real', o camarada que assiste de longe pode ser ainda mais manipulado, tendo livre acesso às inúmeras projeções de sua própria mente e do imaginário com o qual o 'pastor' trabalha. Uma fake news permanente que, dada a distância, está a salvo dos testes de realidade.