O Avesso da Pele
Conforme fui crescendo, suas perguntas foram ficando mais complexas. E confesso que às vezes eu não queria ser profundo. Eu queria apenas brincar e ser como os outros filhos eram com seus pais. No entanto, agora eu sei que você estava me preparando. Você sempre dizia que os negros têm que lutar, pois o mundo branco havia nos tirado quase tudo e que pensar era o que nos restava.
"É necessário preservar o avesso", você me disse.
"Preservar aquilo que ninguém vê. Porque não demora muito e a cor da pele atravessa nosso corpo e determina nosso modo de estar no mundo. E por mais que sua vida seja medida pela cor, por mais que suas atitudes e modos de viver estejam sob esse domínio, você, de alguma forma, tem de preservar algo que não se encaixa nisso, entende? Pois entre músculos, órgãos e veias existe um lugar só seu, isolado e único. E é nesse lugar que estão os afetos. E são esses afetos que nos mantêm vivos".
Lembro que você fazia um grande esforço para ser entendido por mim. Eu estava com nove anos e talvez não tenha compreendido bem o que você queria dizer, mas, a julgar pela água nos seus olhos, me pareceu importante.
O Avesso da Pele. © 2020 Jeferson Tenório. Companhia das Letras, 2020.
📷: trampolim - banhista. © 2019 Antônio Obá. Óleo sobre tela. Galeria Mendes Wood.
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