Saturday, October 18, 2025

18 de outubro de 2016


LUZ, CÂMERA, AÇÃO

O cinema americano é repleto de advogados. O advogado cai bem para a tradição hollywoodiana porque encarna convincentemente a solitária jornada do herói. No mais das vezes ele representa nos filmes a experiência do homem comum em luta pela restauração da normalidade da lei. Sempre que o equilíbrio do mundo se vê abalado, os roteiros americanos escalam um "anybody" para protagonista do drama que põe de volta as coisas no lugar. O cowboy, o soldado, o policial, o professor, o jornalista e tantos outros, cada um à sua maneira, traduzem a capacidade que o indivíduo tem de tornar-se responsável pela mobilização de uma verdadeira teia de ações e reações, cujas consequências são tão imprevisíveis quanto inevitáveis. O happy end há tempos deixou de ser obrigatório, mas segue como o desfecho mais frequente para essa encenação do mito do eterno retorno à ordem natural da sociedade. O advogado, então, é aquele que ao tangenciar os limites estritos do que é considerado legal, realça as contradições sistêmicas da Justiça enquanto instituição. É o esquema dramático grego por excelência que Hollywood sabe, como ninguém, atualizar, diluindo-o na medida exata da catarse de entretenimento.

A arte do roteiro americano tem, porém, par a par com a construção das narrativas universalizantes e arquetípicas, seu viés narcisista. Hollywood não consegue evitar ser confessional. E, sendo a locomotiva da segunda, quiçá primeira, mais importante indústria dos EUA, odeia advogados e seus milionários "casos". Steven Spielberg é especialista em zombar deles incluindo menções em cenas secundárias de seus blockbusters. Em 'O Parque dos Dinossauros' um homem em pânico tenta se esconder de um monstro pré-histórico num prosaico banheiro químico. Farejado, é pego em pose ridícula, de cócoras sobre o vaso sanitário. Vira comida, sem piedade. Sua profissão? Advogado. Num outro filme, conta-se a seguinte piada: "Sabiam que estão substituindo as cobaias por advogados em pesquisas científicas? São dois os motivos: um, o pessoal do laboratório se apega menos. Depois, tem coisa que rato não topa fazer".

A relação de amor e ódio que Hollywood mantém com os advogados conta muito do ethos de um país que, ao mesmo tempo, se ergue sobre a crença emancipatória contida na defesa da igualdade de direitos e mantém em funcionamento as mais cruéis e genocidas práticas dentro de seu próprio território. O advogado - de filme - corporifica o Davi que vence, contra todas as expectativas, o gigante. O advogado da vida real é, para o big business estadunidense, a figura que pode roer-lhe pedaços, a pequena ameaça que, se não destrói, tem a manha de irritar profundamente. O personagem advogado mobiliza para a ação, é político, lidera processos. O advogado de carne e osso, pela via jurídica, "abre" processos, "move" ações.

Em comparação, o cinema brasileiro que, cada vez mais, adere ao mainstream de roteiro, fotografia e montagem de padrão hollywoodiano, já tem justiceiros, novos ricos, seres magicamente transformados, incorreção política, espiritismo e toda sorte de clichês narrativos, mas, salvo engano, nenhum advogado. A adoção de fórmulas na arte, ou, pelo menos, na comunicação, esbarra no limite do incompreensível. O Judiciário brasileiro é marcado, antes de mais nada, pela exclusividade do acesso, seja para o usuário ou para o profissional. Sua mais recente metamorfose acontece, acrescente-se, pela valorização dos concursos públicos e os concursos, ao restringirem, pela dificuldade das provas, os reais concorrentes a gente que vem de histórias de vida privilegiadas, acabaram por fortalecer uma espécie de casta encastelada no Estado. Uma coisa é imitar um filme americano de guerra de gangues numa favela do Rio, como 'Cidade de Deus'. Ou vestir como policial um personagem atormentado por dilemas shakespearianos e assim liberá-lo para cometer todo tipo de atrocidades, como em 'Tropa de Elite'. No Brasil, o advogado herói é uma espécie de impossibilidade estatística. Seria tão verossímil quanto um astronauta, ou um samurai tupiniquim. A Justiça no Brasil reforça abertamente nosso milenar patrimonialismo. Não temos, entre nós, o mito fundador da equidade. Como se Davi não tivesse nunca a chance de encontrar com Golias: falta o campo de batalha. O Judiciário tem a forma, não de um campo, mas de um enorme muro sem brechas. No filme de advogado made in Brazil, baseado em fatos reais, a gente morre no fim. Do lado de fora.

Tuesday, October 14, 2025

14 de outubro de 2015


 AS YOU LIKE IT

A manchete de hoje poderia ter sido:

"Apenas 33% dos leitores da Folha desaprovam a Gestão Alckmin".

Ou, então:

"67% dos leitores da Folha consideram o Congresso ruim ou péssimo".

Também cabia:

"Fernando Haddad tem 56% de reprovação entre leitores da Folha".

Ou mesmo:

"64% dos leitores da Folha acham que a crise tende a piorar nos próximos meses".

Mas, claro, a opção foi: "61% dos leitores querem renúncia de Dilma".

E apenas no subtítulo: "Pesquisa Datafolha feita - COM O PÚBLICO DA FOLHA - mostra que 77% classificam o governo como ruim ou péssimo".

Não é uma pesquisa sobre o Governo, embora pareça. É uma matéria sobre perfil de leitores do jornalão do Frias Filho.

O perfil que todo mundo já sabe qual é:

"Metade dos entrevistados (48%) tem renda familiar mensal superior a dez salários mínimos, 76% têm ensino superior, 83% são do Sudeste, quase 60% não têm partido de preferência, mas 59% votaram em Aécio Neves (PSDB) no segundo turno da eleição presidencial de 2014".

O aspecto mais relevante, sendo esta uma pesquisa de perfil de consumidor, e que, disparado, mereceria a manchete, diz respeito à percepção que o leitor tem do lugar que o jornal ocupa no espectro ideológico:

"O maior grupo de leitores (30%) posicionou a Folha como uma publicação de centro-direita. Para 26%, o jornal é de centro. Outros 22% o identificam como de direita. O jornal é visto como de centro-esquerda por 12%. E de esquerda por 5%".

A miopia política dos 5% que a classificam "à esquerda" está longe de desmentir o que já se sabe, mas a pesquisa comprova: quase 90% desses leitores altamente identificados com a linha editorial da Folha têm perfeita consciência das convicções políticas que o jornal defende. 

Na prática, os resultados da amostragem confirmam a clara via de mão dupla entre o que se publica e o que se espera que a Folha publique. Em detrimento, é claro, da proverbial imparcialidade que a propaganda anuncia há décadas.