18 de outubro de 2016
O cinema americano é repleto de advogados. O advogado cai bem para a tradição hollywoodiana porque encarna convincentemente a solitária jornada do herói. No mais das vezes ele representa nos filmes a experiência do homem comum em luta pela restauração da normalidade da lei. Sempre que o equilíbrio do mundo se vê abalado, os roteiros americanos escalam um "anybody" para protagonista do drama que põe de volta as coisas no lugar. O cowboy, o soldado, o policial, o professor, o jornalista e tantos outros, cada um à sua maneira, traduzem a capacidade que o indivíduo tem de tornar-se responsável pela mobilização de uma verdadeira teia de ações e reações, cujas consequências são tão imprevisíveis quanto inevitáveis. O happy end há tempos deixou de ser obrigatório, mas segue como o desfecho mais frequente para essa encenação do mito do eterno retorno à ordem natural da sociedade. O advogado, então, é aquele que ao tangenciar os limites estritos do que é considerado legal, realça as contradições sistêmicas da Justiça enquanto instituição. É o esquema dramático grego por excelência que Hollywood sabe, como ninguém, atualizar, diluindo-o na medida exata da catarse de entretenimento.
A arte do roteiro americano tem, porém, par a par com a construção das narrativas universalizantes e arquetípicas, seu viés narcisista. Hollywood não consegue evitar ser confessional. E, sendo a locomotiva da segunda, quiçá primeira, mais importante indústria dos EUA, odeia advogados e seus milionários "casos". Steven Spielberg é especialista em zombar deles incluindo menções em cenas secundárias de seus blockbusters. Em 'O Parque dos Dinossauros' um homem em pânico tenta se esconder de um monstro pré-histórico num prosaico banheiro químico. Farejado, é pego em pose ridícula, de cócoras sobre o vaso sanitário. Vira comida, sem piedade. Sua profissão? Advogado. Num outro filme, conta-se a seguinte piada: "Sabiam que estão substituindo as cobaias por advogados em pesquisas científicas? São dois os motivos: um, o pessoal do laboratório se apega menos. Depois, tem coisa que rato não topa fazer".
A relação de amor e ódio que Hollywood mantém com os advogados conta muito do ethos de um país que, ao mesmo tempo, se ergue sobre a crença emancipatória contida na defesa da igualdade de direitos e mantém em funcionamento as mais cruéis e genocidas práticas dentro de seu próprio território. O advogado - de filme - corporifica o Davi que vence, contra todas as expectativas, o gigante. O advogado da vida real é, para o big business estadunidense, a figura que pode roer-lhe pedaços, a pequena ameaça que, se não destrói, tem a manha de irritar profundamente. O personagem advogado mobiliza para a ação, é político, lidera processos. O advogado de carne e osso, pela via jurídica, "abre" processos, "move" ações.
Em comparação, o cinema brasileiro que, cada vez mais, adere ao mainstream de roteiro, fotografia e montagem de padrão hollywoodiano, já tem justiceiros, novos ricos, seres magicamente transformados, incorreção política, espiritismo e toda sorte de clichês narrativos, mas, salvo engano, nenhum advogado. A adoção de fórmulas na arte, ou, pelo menos, na comunicação, esbarra no limite do incompreensível. O Judiciário brasileiro é marcado, antes de mais nada, pela exclusividade do acesso, seja para o usuário ou para o profissional. Sua mais recente metamorfose acontece, acrescente-se, pela valorização dos concursos públicos e os concursos, ao restringirem, pela dificuldade das provas, os reais concorrentes a gente que vem de histórias de vida privilegiadas, acabaram por fortalecer uma espécie de casta encastelada no Estado. Uma coisa é imitar um filme americano de guerra de gangues numa favela do Rio, como 'Cidade de Deus'. Ou vestir como policial um personagem atormentado por dilemas shakespearianos e assim liberá-lo para cometer todo tipo de atrocidades, como em 'Tropa de Elite'. No Brasil, o advogado herói é uma espécie de impossibilidade estatística. Seria tão verossímil quanto um astronauta, ou um samurai tupiniquim. A Justiça no Brasil reforça abertamente nosso milenar patrimonialismo. Não temos, entre nós, o mito fundador da equidade. Como se Davi não tivesse nunca a chance de encontrar com Golias: falta o campo de batalha. O Judiciário tem a forma, não de um campo, mas de um enorme muro sem brechas. No filme de advogado made in Brazil, baseado em fatos reais, a gente morre no fim. Do lado de fora. cai bem para a tradição hollywoodiana porque encarna convincentemente a solitária jornada do herói. No mais das vezes ele representa nos filmes a experiência do homem comum em luta pela restauração da normalidade da lei. Sempre que o equilíbrio do mundo se vê abalado, os roteiros americanos escalam um "anybody" para protagonista do drama que põe de volta as coisas no lugar. O cowboy, o soldado, o policial, o professor, o jornalista e tantos outros, cada um à sua maneira, traduzem a capacidade que o indivíduo tem de tornar-se responsável pela mobilização de uma verdadeira teia de ações e reações, cujas consequências são tão imprevisíveis quanto inevitáveis. O happy end há tempos deixou de ser obrigatório, mas segue como o desfecho mais frequente para essa encenação do mito do eterno retorno à ordem natural da sociedade. O advogado, então, é aquele que ao tangenciar os limites estritos do que é considerado legal, realça as contradições sistêmicas da Justiça enquanto instituição. É o esquema dramático grego por excelência que Hollywood sabe, como ninguém, atualizar, diluindo-o na medida exata da catarse de entretenimento.
A arte do roteiro americano tem, porém, par a par com a construção das narrativas universalizantes e arquetípicas, seu viés narcisista. Hollywood não consegue evitar ser confessional. E, sendo a locomotiva da segunda, quiçá primeira, mais importante indústria dos EUA, odeia advogados e seus milionários "casos". Steven Spielberg é especialista em zombar deles incluindo menções em cenas secundárias de seus blockbusters. Em 'O Parque dos Dinossauros' um homem em pânico tenta se esconder de um monstro pré-histórico num prosaico banheiro químico. Farejado, é pego em pose ridícula, de cócoras sobre o vaso sanitário. Vira comida, sem piedade. Sua profissão? Advogado. Num outro filme, conta-se a seguinte piada: "Sabiam que estão substituindo as cobaias por advogados em pesquisas científicas? São dois os motivos: um, o pessoal do laboratório se apega menos. Depois, tem coisa que rato não topa fazer".
A relação de amor e ódio que Hollywood mantém com os advogados conta muito do ethos de um país que, ao mesmo tempo, se ergue sobre a crença emancipatória contida na defesa da igualdade de direitos e mantém em funcionamento as mais cruéis e genocidas práticas dentro de seu próprio território. O advogado - de filme - corporifica o Davi que vence, contra todas as expectativas, o gigante. O advogado da vida real é, para o big business estadunidense, a figura que pode roer-lhe pedaços, a pequena ameaça que, se não destrói, tem a manha de irritar profundamente. O personagem advogado mobiliza para a ação, é político, lidera processos. O advogado de carne e osso, pela via jurídica, "abre" processos, "move" ações.
Em comparação, o cinema brasileiro que, cada vez mais, adere ao mainstream de roteiro, fotografia e montagem de padrão hollywoodiano, já tem justiceiros, novos ricos, seres magicamente transformados, incorreção política, espiritismo e toda sorte de clichês narrativos, mas, salvo engano, nenhum advogado. A adoção de fórmulas na arte, ou, pelo menos, na comunicação, esbarra no limite do incompreensível. O Judiciário brasileiro é marcado, antes de mais nada, pela exclusividade do acesso, seja para o usuário ou para o profissional. Sua mais recente metamorfose acontece, acrescente-se, pela valorização dos concursos públicos e os concursos, ao restringirem, pela dificuldade das provas, os reais concorrentes a gente que vem de histórias de vida privilegiadas, acabaram por fortalecer uma espécie de casta encastelada no Estado. Uma coisa é imitar um filme americano de guerra de gangues numa favela do Rio, como 'Cidade de Deus'. Ou vestir como policial um personagem atormentado por dilemas shakespearianos e assim liberá-lo para cometer todo tipo de atrocidades, como em 'Tropa de Elite'. No Brasil, o advogado herói é uma espécie de impossibilidade estatística. Seria tão verossímil quanto um astronauta, ou um samurai tupiniquim. A Justiça no Brasil reforça abertamente nosso milenar patrimonialismo. Não temos, entre nós, o mito fundador da equidade. Como se Davi não tivesse nunca a chance de encontrar com Golias: falta o campo de batalha. O Judiciário tem a forma, não de um campo, mas de um enorme muro sem brechas. No filme de advogado made in Brazil, baseado em fatos reais, a gente morre no fim. Do lado de fora.
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