A classe média e suas frações
Qual a especificidade da classe média? Quais os modos mais adequados para lhes falar à mente e ao coração? Quais seus medos específicos? Quais seus desejos particulares? É a partir dessas questões que podemos conhecer o comportamento de qualquer classe social, assim como de qualquer indivíduo também. Saber a sua renda, a forma como o liberalismo (não) percebe as classes sociais não nos esclarece nenhuma dessas questões.
O mais importante aqui é perceber como cada classe legitima sua vida e sua ação no mundo. Como a classe média é uma classe intermediária, entre a elite do dinheiro, de quem é uma espécie de “capataz moderno”, e as classes populares a quem explora, ela tem que se autolegitimar tanto para cima quanto para baixo. Uma estrutura de justificação da vida bifronte, como o deus Juno da mitologia.
Minha tese é que ela se justifica para cima com o moralismo e para baixo com o populismo. Não por acaso precisamente as duas ideias centrais que a elite do dinheiro e seus intelectuais orgânicos construíram para tornar a classe média cativa e manipulável simbolicamente pela elite. Nossos intelectuais e pensadores do patrimonialismo e do populismo legaram à mídia a linguagem e a semântica para que elas possam se dirigir a seu público cativo, a classe média consumidora do capitalismo seletivo, fazendo de conta que defende seus interesses e os interesses da nação.
A elite do dinheiro soube muito bem aproveitar as necessidades de justificação e de autojustificação dos setores médios. Comprou uma inteligência para formular uma teoria liberal moralista feita com precisão de alfaiate para as necessidades do público que queria arregimentar e controlar. Esse tipo de compra não se dá apenas nem principalmente com dinheiro. São os mecanismos de consagração de um autor e de uma ideia seguindo aparentemente todas as regras específicas do campo científico.
Não basta construir a universidade mais importante e de mais prestígio, como a elite paulistana criou a USP e as teses do patrimonialismo e populismo. É necessário ter os jornais também nas mãos da elite para reverberar as teorias falsamente críticas para o público indefeso. É preciso ter as editoras de maior nome e influência e o acesso aos financiamentos de pesquisa, aos prêmios, honrarias e mecanismos de consagração intelectual.
Assim, é possível usar a posição de proprietária dos meios de produção material para se apropriar dos meios simbólicos de produção e reprodução da sociedade. É aqui que entra o contexto que existe até hoje entre imprensa, universidade, editoras, premiações e honrarias e capital econômico. Como o dinheiro não pode aparecer comprando diretamente os valores que guiam as esferas da cultura, do conhecimento e da informação, essas esferas precisam construir mecanismos de consagração internos a ela como se fossem infensos à autoridade do dinheiro e do poder.
Se os ricos se legitimam pelo bom gosto supostamente inato para esconder sua origem monetária, e levam uma vida “exclusiva”, apartada do restante da sociedade, a legitimação dos privilégios da classe média é distinta. Como seu privilégio é invisível pela reprodução da socialização familiar que esconde seu trabalho prévio de formar vencedores, a classe média é a classe por excelência da meritocracia e da superioridade moral. Eles servem tanto para distingui-la e para justificar seus privilégios em relação aos pobres como também aos ricos.
Os pobres são desprezados, enquanto os ricos são invejados pela classe média. Existe uma ambiguidade nesse sentimento, em relação aos ricos, que vincula admiração e ressentimento. A suposta superioridade moral da classe média dá a sua clientela tudo aquilo que ela mais deseja: o sentimento de representarem o melhor da sociedade. Não só a classe que “merece” o que tem por esforço próprio, conforto que a falsa ideia da meritocracia propicia; mas, também, a classe que tem algo que ninguém tem, nem os ricos, que é a certeza de sua perfeição moral.
Isso não significa dizer que o moralismo não tenha eco também nas outras classes. Em alguma medida, esse discurso nos toca a todos. Mas na classe média ele está em “casa”. Como a única corrupção que incomoda a classe média tradicional é a corrupção reservada aos poderosos, que controlam o poder político e econômico, sua própria impotência social os preserva. Como, na imensa maioria dos casos, não possui os meios de se envolver nas grandes negociatas que envolvem milhões, a classe média não tem sequer, na prática, o dilema moral de se deixar ou não corromper. Como justificação e legitimação da própria vida, o esquema moralista é, portanto, perfeito. Em relação aos poderosos, a classe média pode se ver sempre como “virgem imaculada” e moralmente perfeita.
De outro modo, como explicar tamanho estreitamento da noção de moralidade, a qual faz com que deixe de ter qualquer relevância, por exemplo, a forma como se relaciona com os mais frágeis socialmente? Como alguém que explora as outras classes abaixo dela sob a forma de salário vil, de modo a poupar tempo nas tarefas domésticas, e que apoia a matança indiscriminada de pobres pela polícia, ou até a chacina de presos indefesos, consegue ter a pachorra de se acreditar moralmente elevado?
Moralidade no Ocidente significa, antes de tudo, respeito pelo outro, especialmente o outro fragilizado por situações em relação às quais não possui nenhuma culpa. Daí que a indignação moral tão seletiva da classe média entre nós, com a corrupção dos poderosos, seja pouco mais que legitimação mesquinha de uma conduta cotidiana imoral sob qualquer aspecto relevante.
O segundo ponto da justificação da classe média para baixo, em relação às classes populares, é o mais interessante e que a transforma definitivamente na marionete perfeita da elite do dinheiro. A classe média brasileira possui um ódio e um desprezo cevados secularmente pelo povo. Essa é talvez nossa maior herança intocada da escravidão nunca verdadeiramente compreendida e criticada entre nós. Para que se possa odiar o pobre e o humilhado, tem-se que construí-lo como culpado de sua própria (falta de) sorte e ainda torná-lo perigoso e ameaçador.
Se possível, deve-se humilhá-lo, enganá-lo, desumanizá-lo, maltratá-lo e matá-lo cotidianamente. Era isso que se fazia com o escravo e é exatamente a mesma coisa que se faz com a ralé de novos escravos hoje em dia. Transformava-se o trabalho manual e produtivo em vergonha suprema, como “coisa de preto”, e depois se espantava que o negro não enfrentasse o trabalho produtivo com a mesma naturalidade que os imigrantes estrangeiros, para quem o trabalho era símbolo de dignidade. Dificultava-se de todas as formas a formação da família escrava e nos espantamos com as famílias desestruturadas dos nossos excluídos de hoje, mera continuidade de um ativismo perverso para desumanizar os escravos de ontem e de hoje.
Os escravos foram sistematicamente enganados, compravam a alforria nas minas e eram escravizados novamente e vendidos para outras regiões, eram brutalizados, assassinados covardemente. A matança continua também agora com os novos escravos de todas as cores. O Brasil tem mais assassinatos – de pobres – que qualquer outro país do mundo. São 60 mil pobres assassinados por ano no Brasil. Existe uma guerra de classes hoje declarada e aberta. Construiu-se toda uma percepção negativa dos escravos e de seus descendentes como feios, fedorentos, incapazes, perigosos e preguiçosos, isso tudo sob forma irônica, povoando o cotidiano com ditos e piadas preconceituosas, e hoje muitos se comprazem em ver a profecia realizada.
A concepção que um ser humano tem de si mesmo não depende de sua vontade e é formada pela forma como o indivíduo é percebido pelo seu meio social maior. É isso que significa dizer que somos produtos sociais. Nos tornamos, em grande medida, aquilo que a sociedade vê em nós. O Brasil não simplesmente abandonou os escravos e seus descendentes à miséria. Os brasileiros das classes superiores cevaram a miséria e a construíram ativamente. Construiu-se uma classe de humilhados para assim explorá-los por pouco e para construir uma distinção meritocrática covarde contra quem nunca teve igualdade de ponto de partida. Não se entende a miséria permanente e secular dos nossos excluídos sociais sem esse ativismo social e político covarde e perverso de nossas classes “superiores”.
Em um contexto de democracia de massas, a dominação covarde precisava ser repaginada e modernizada. A teoria do populismo das massas serve a esse propósito. Qualquer tentativa, mesmo tímida, como a que tivemos recentemente, de mitigar esse sofrimento e essa condenação secular, tem que ser estigmatizada e condenada no nascedouro. Se existe alguma política a seu favor, só pode ser para manipular seu voto supostamente inconsciente. Quando se diz que a democracia entre nós sempre foi um mal-entendido, como afirmou Sérgio Buarque, o motivo não é o patrimonialismo que ele inventou. O mal-entendido é que classes sem valor não devem nem podem ter qualquer participação na política. Uma classe que não sabe votar, uma classe que nem deveria existir. Essa é a função da noção de populismo entre nós: revestir de caráter científico o pior e o mais covarde dos preconceitos.
O moralismo estreito para inglês ver e o ódio secular às classes populares parece-me a mais brasileira de todas as nossas singularidades sociais. Como os preconceitos são sociais e não individuais como somos inclinados a pensar, todas as classes superiores no Brasil partilham desse preconceito.
Ainda que, mais uma vez, ele esteja verdadeiramente em casa na classe média. Ainda que a classe média seja muito heterogênea, toda ela, sem exceção, inclusive o autor que aqui escreve, é portadora em maior ou menor grau desse tipo de preconceito. De alguma maneira “nascemos” com ele e o introjetamos e o incorporamos de modo seja inconsciente e pré-reflexivo, seja de modo refletido e consciente como ódio aberto.
Mais uma vez, as ideias, os valores, os preconceitos são todos sociais e não existe nada de individual neles. Mesmo quem critica os preconceitos os tem dentro de si como qualquer outra pessoa criada no mesmo ambiente social. O que nos diferencia é a vigilância em relação a eles e a tentativa de criticá-los de modo refletido em alguns e não em outros. Mas todos nós somos suas vítimas. Afinal, eles nos são passados desde tenra idade quando não temos defesas conscientes contra eles. E nos são transmitidos normalmente não como discurso articulado, o que facilitaria sua crítica, mas por coisas como olhares, inflexão de voz, lapsos, expressões faciais, etc. Tudo isso por parte de pessoas que amamos e que tendemos a imitar. As crianças decodificam o que esses sinais procuram dizer e assumem para si os preconceitos, naturalizando-os como naturalizamos o ato de respirar, ou o fato de o Sol nascer todos os dias.
É desse modo que toda a classe média desenvolve uma mistura de medo e de raiva em relação aos pobres em geral. Com os pobres que a servem a relação pode se tornar, eventualmente, mais ambígua, especialmente nas frações mais críticas que tentam desenvolver mecanismos de compensação para sua culpa de classe. Mas a regra é o sadismo mesmo nessas relações mais próximas de modo muito semelhante ao tratamento dos escravos domésticos na escravidão. A continuidade é óbvia. Como nunca criticamos a escravidão, e como sempre, inclusive, tentamos torná-la invisível como se ela nunca tivesse existido, suas práticas continuadas com máscaras modernas também não são percebidas como continuidade.
Mas se a maior parte da classe média é tendencialmente conservadora, por ser criada nesse tipo de ambiente, ela não o é do mesmo modo em todos os segmentos. Mais ainda. O próprio reduto da crítica social mais acerba também é composto e representado pela classe média com capital cultural mais crítico.
Em estudo que ainda estamos realizando, combinando material empírico produzido no IPEA – em pesquisa que idealizei e coordenei pessoalmente, quando presidente desta entidade de pesquisa, acrescida de entrevistas que realizei por conta própria em várias grandes cidades brasileiras –, podemos, como hipótese de trabalho, diferenciar quatro nichos ou frações de classe na classe média. As questões centrais que permitiram essa reconstrução foram precisamente a noção de moralidade mais ou menos abrangente e mais ou menos refletida, e a forma como se percebe as outras classes sociais. Essas duas questões ou variáveis nos dão uma ideia precisa da forma como os indivíduos entrevistados percebem a si mesmos e aos outros. Essas são as questões que nos dão acesso à moralidade específica de cada um e, portanto, ao que chamamos de visão de mundo política. A visão política de cada um, assim como das frações de classe a que pertencemos, é precisamente resultado da forma como percebemos a nós mesmos e aos outros.
O fator decisivo para a compreensão da heterogeneidade das visões políticas da classe média é o tipo de capital cultural diferencial que é apropriado seletivamente pelas respectivas frações, construído pelas socializações familiar e escolar distintas. Como vimos, as classes sociais são construídas pela socialização familiar e escolar. É essa combinação, inclusive, que irá determinar sua renda mais tarde.
São elas, portanto, que formam os indivíduos diferencialmente aparelhados para a competição social. A classe média é a classe por excelência do capital cultural legítimo e valorizado. Aquele tipo de capital cultural que junta um certo conhecimento que capacita essa classe à função de capataz moderno da elite com formas de sociabilidade, também aprendidas na família e na escola, que possibilitam sua utilização como privilégio e distinção.
A complexidade e heterogeneidade da classe média é que a junção de conhecimento valorizado com habilidades sociais específicas, além de certo capital econômico de partida, os três aspectos que as separam das classes populares, possui distinções importantes ainda que no mesmo segmento privilegiado da classe média. Nenhum desses aspectos que mencionamos é consciente ou refletido para as pessoas.
Nós os utilizamos o tempo todo na vida como meio de auferir sucesso no dia a dia, sem obrigatoriamente sabermos conscientemente o que estamos fazendo.
Isso tem a ver com uma peculiaridade importante do capital cultural que é o fato de ele se confundir com a própria pessoa. O capital cultural, ao contrário do capital econômico, precisa ser incorporado, ou seja, tornado corpo, reflexo automático, para produzir os seus efeitos. Ele representa um conjunto de predisposições para a ação que assimilamos na família e na escola que nos definem, em grande medida, enquanto indivíduo. Geralmente, não temos distanciamento reflexivo em relação àquilo que o capital cultural que incorporamos faz de nós, do mesmo modo que também não temos distanciamento reflexivo em relação àquilo que somos. Ao contrário, desenvolvemos um estilo de vida e um conjunto de justificações para proteger e legitimar aquilo que já somos.
A atividade profissional que “escolhemos” já está, assim como o nível de renda que se terá mais tarde, em boa medida, prefigurada pelo tipo de capital cultural que incorporamos. Os tipos de classe média que construímos refletem esse fato. Os quatro nichos ou frações de classe que reconstruímos a partir desse trabalho ainda em andamento se referem às frações que denominamos como, respectivamente, fração protofascista, fração liberal, fração expressivista, que costumo apelidar de “classe média de Oslo”, e a menor fração de todas, a fração crítica.
Em termos quantitativos, a fração liberal é a maior, com cerca de 35% do total, vindo a seguir a fração protofascista, com cerca de 30%. Os 35% restantes compõem aquilo que poderíamos chamar de classe média com mais alto capital cultural, ou capital cultural reflexivo. No contexto dessas frações com mais alto capital cultural, composto por pessoas que, comparativamente, estudaram mais tempo, conhecem outras línguas, viajam e leem mais, consomem produtos culturais mais diferenciados e se inclinam a perceber a própria vida e a vida social mais como invenção cultural e menos como natureza já dada, existe uma subdivisão importante.
Cerca de 60% dessa classe média mais instruída, ou cerca de 20% do total de toda a classe média, forma aquilo que podemos chamar de fração expressivista da classe média. Já vimos aqui que o Ocidente, na sua história, logra institucionalizar duas fontes de toda a moralidade possível: a noção de produtividade para o bem comum, aquilo que confere dignidade para qualquer indivíduo; e a noção de personalidade sensível, em parte criada contra o produtivismo, como forma de se inventar narrativamente um novo tipo de ser humano.
A ideia aqui, que ganha as mentes e os corações de todos em gradações diversas, é que aquilo que define o que há de mais alto, ou seja, a virtude, nos seres humanos não é apenas sua capacidade produtiva, mas a possibilidade de ser fiel a seus sentimentos e emoções mais íntimos. Como esses sentimentos e emoções são, por definição, reprimidos e silenciados para o bem da disciplina e da capacidade produtiva, nós temos que aprender a conhecê-los e expressá-los.
Já vimos também que o capitalismo aprendeu a lidar até com esta que foi a crítica mais radical a sua essência, tendo em vista que a crítica socialista também era produtivista. Foi o capitalismo financeiro que domou o conteúdo revolucionário do expressivismo e transformou as bandeiras da contracultura em estímulo à produção. Desde então, criatividade passa a ser soluções ágeis para os dilemas corporativos e sensibilidade passa a ser a habilidade de gerir pessoas.
Mais importante ainda, pode-se agora ser expressivista sem qualquer crítica social que envolva efetiva distribuição de riqueza e de poder. Expressivismo, também em país de maioria pobre como o nosso, passa a ser a preservação das matas e o respeito às minorias identitárias e temas como sustentabilidade e responsabilidade social de empresas. O charme dessa posição é que ela tira onda de emancipadora, como na luta pelos direitos das minorias e pela preservação da natureza.
Esses temas são, na verdade, realmente fundamentais. O engano reside na reversão das hierarquias. Em um país onde tantos levam uma vida miserável e indigna deste nome, a superação da miséria de tantos é a luta primeira e mais importante. As lutas pela preservação da natureza e das liberdades das minorias, importantes como elas são, devem ser acopladas a esse fio condutor que implica a superação de todas as injustiças. Não é assim que a fração expressivista percebe o mundo. As lutas pelas minorias e pela natureza preservada são levadas a cabo, na realidade, em substituição a uma pauta mais abrangente que permitiria ligar essas lutas à luta geral contra todo tipo de opressão material ou simbólica.
Tudo se dá como se esse pessoal bem-intencionado morasse em Oslo e tivesse apenas relações com seus amigos de Copenhague e Estocolmo, acreditando, ao fim e ao cabo, que mora na Escandinávia e não no Brasil. Para um sueco que efetivamente resolveu os problemas centrais de injustiça social e distribuição de riquezas, não é estranho que se dedique à preservação de espécies raras e faça dessa luta sua atuação política principal. Que um brasileiro faça o mesmo e se esqueça da sorte de tantos seres humanos tão perto dele é apenas compreensível se ele os torna invisíveis. Por conta disso, decidi chamar essa fração da classe média, que tira onda de moderna e emancipadora, de “classe média de Oslo”. Ela é fundamental para que possamos compreender o Brasil moderno.
Os eleitores da candidata Marina Silva são exemplos clássicos desse tipo de classe média. Como a questão da divisão de riqueza e poder, o que realmente importa na sociedade, está em segundo plano, o capitalismo financeiro está muito à vontade nesse esquema. Explorar mulher ou homem, branco ou negro, heterossexual ou homossexual, não apresenta qualquer diferença para o capital financeiro. Não à toa a candidata é apoiada por bancos conhecidos. A Rede Globo também nada de braçada nesse mundo do pseudocharme emancipador. Essa é a inteligência do novo capitalismo que usa a linguagem da emancipação para melhor oprimir e explorar.
Na outra ponta desses 40% da classe média de maior capital cultural comparativo, temos a menor fração entre todas, que é a fração que denomino de crítica. Ela perfaz nos nossos cálculos apenas 15% do total da classe média. O que faz com que a denomine de crítica não é nenhuma tomada de posição política particular, mas sim uma atitude em relação ao mundo singular. O mundo social é percebido como construído, o que enseja também uma atitude mais ativa em relação a ele. Essa atitude básica se contrapõe à percepção do mundo como dado, como uma natureza sob outra forma, em relação à qual é preciso se adaptar. A forma de adaptação mais comum é se sentir pertencendo a correntes dominantes de opinião. A pequena fração crítica tem que navegar em mares turvos, já que em luta constante contra a corrente dominante. Ela mostra a dificuldade de se chegar a formas de liberdade pessoal e social e de autonomia real no contexto de uma sociedade perversa e repressiva. Por conta disso, ela também é prenhe de contradições como todas as outras frações.
Quanto às frações dominantes, responsáveis pela ampla maioria de 2/3, a análise das entrevistas me levou a separá-las em protofascista e liberal. Essa é a classe média tradicional do conhecimento técnico, ou seja, daquele tipo de conhecimento que serve diretamente às necessidades do capital e sua reprodução e de menor contribuição para uma transformação da própria personalidade. Esta inclusive, a própria personalidade, não é vista como um processo de descoberta e criação. O distanciamento em relação a si mesmo e o distanciamento reflexivo em relação à sociedade exigem pressupostos improváveis. Daí que sejam raros, mesmo na classe média privilegiada.
Para que se perceba a vida como invenção, é necessário saber conviver com a incerteza e a dúvida, duas das coisas que a personalidade tradicional e adaptativa mais odeia. A convivência com a dúvida é afetivamente arriscada e demanda enorme energia pessoal. O maior desafio aqui não é simplesmente cognitivo, mas de natureza emocional. Procura-se, para evitar a incerteza e o risco, a segurança das certezas compartilhadas. São elas que dão a sensação de tranquilidade e certeza da própria justeza e correção. Andar na corrente de opinião dominante com a maioria das outras pessoas confere a sensação de que o mundo social compartilhado é sua casa.
Essas são as frações mais suscetíveis à imprensa e a seu papel de articular e homogeneizar um discurso dominante para além das idiossincrasias individuais. O que a grande empresa de imprensa vende a seu público cativo é essa tranquilidade das certezas fáceis, o que torna o moralismo cínico da imprensa – que nunca tematiza seu próprio papel nos esquemas de corrupção – o arranjo de manipulação política perfeito para esses estratos sociais. É esse compartilhamento afetivo e emocional, já advindo da força da socialização familiar anterior, que faz com que essas pessoas procurem o tipo de capital cultural mais afirmativo da ordem social. Nele o capataz da elite, que ajuda a reproduzir na realidade cotidiana todos os privilégios que estão ganhando, está em casa.
Se essas são as frações de classe média cujas cabeças são feitas pela mídia tradicional e dominante, o processo não é unilateral. A mídia não cria para eles uma interpretação do mundo do nada. Trata-se muito mais de uma dialética de interdependência, em que a mídia aprende a se comunicar com sua classe de referência e seus consumidores mais leais, enquanto as frações tradicionais recebem da mídia o que precisam: um discurso homogêneo e totalizador que permita a defesa de suas opiniões, e generalizado e compartilhado o suficiente para lhes dar as certezas de que tanto precisam. O conforto aqui é aquele que legitima a vida tradicional e afirmativa do mundo. A tranquilidade de se estar no caminho correto, correção esta que não é por definição uma descoberta pessoal e arriscada, mas sim aquela que se percebe correta porque se tem a companhia da maioria.
Essas são também as frações do moralismo, ou seja, daquela noção de moralidade tão pouco arriscada e construtivista quanto sua forma de cognição do mundo. O que é justo e moral não é percebido como algo que se construa paulatinamente, à custa de experiências cotidianas desafiadoras, em um processo de aprendizado doloroso por meio do qual se reconhece, no melhor dos casos, nosso próprio envolvimento em tudo aquilo que criticamos da boca para fora. Esse tipo de aprendizado moral que exige o incondicional reconhecimento de que o mal nos habita a todos, e que só nos livramos dele apenas parcialmente e ainda assim sob o custo de uma vigilância eterna.
O moralismo é muito diferente. Ele pula todas as etapas arriscadas e incertas e abraça só o produto fácil e vendido a baixo custo pela mídia e pela indústria cultural construída para satisfazer esse tipo de consumidor: a boa consciência das certezas compartilhadas. É nesse terreno que o liberal se afasta do protofascista. Para o liberal, os rituais da convivência democrática são constitutivos, ainda que possa ser convencido das necessidades de exceções no contexto democrático. Ele é o tipo de classe média que se sente enganado, hoje em dia, pela propaganda do golpe vendido como combate contra a corrupção. As exceções da ordem democrática não se reverteram em mais democracia como ele, no nível consciente pelo menos, legitimava seu apoio ao golpe.
O protofascista, que, na verdade, se espraia da classe média para setores significativos das classes populares, é bem diferente. O golpe lhe trouxe o mundo onde pode expressar legitimamente seu ódio e seu ressentimento. O ódio às classes populares é aqui aberto e dito com orgulho, como expressão de ousadia ou sinceridade. O protofascista se orgulha de não ser falso como os outros e poder dizer o que lhe vem à mente. O mal e o bem estão claramente definidos e o bem se confunde com a própria personalidade.
Mais ainda. Como nunca aprendeu a se criticar, o protofascista tem uma sensibilidade à flor da pele e qualquer crítica aciona uma reação potencialmente violenta. Assim, qualquer crítica é percebida como negação da personalidade como um todo, pela ausência de qualquer distanciamento em relação a si mesmo, gerando uma violência também totalizadora. Essa banalidade do mal não existia antes entre nós.
Ela foi criação midiática, ainda que ninguém na Rede Globo ou nas outras mídias, agora, queira assumir a responsabilidade pelo que fez.
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Jessé Souza. A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato - Rio de Janeiro: Leya, 2017.
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