Monday, September 30, 2024

Origem das Cartas do Tarô

Há milhares de anos, o reino egípcio estava ameaçado de ser conquistado e destruído por um poderoso inimigo. Diante dessa ameaça e da catástrofe iminente, os sacerdotes do reino temiam que o conhecimento, arduamente conquistado ao longo dos séculos, pudesse perder-se para sempre. Os sacerdotes hierarquicamente superiores reuniram-se em conselho, a fim de deliberar sobre como mantê-lo e transmiti-lo à humanidade, apesar da destruição e do aniquilamento.

Um dos sacerdotes sugeriu que se entalhasse a sabedoria nas paredes e muros das pirâmides sob a forma de desenhos e símbolos. Sua sugestão, no entanto, acabou sendo recusada, sob o argumento de que até mesmo as paredes mais fortes são construídas por mãos humanas, sendo, portanto, transitórias. Outro sacerdote quis escolher as dez pessoas mais sábias e inteligentes do país para iniciá-las nos Mistérios; elas, por sua vez, antes de morrer transmitiriam o conhecimento a outras que considerassem sábias.

Contra essa sugestão outro sábio opôs o argumento: "A sabedoria não é um estado duradouro e muitas vezes o sábio se transforma num tolo. Dessa forma, a estabilidade do nosso conhecimento não estará segura".

Há algo, no entanto, disse um outro, que é estável na humanidade: o vício. "Devemos confiar nosso conhecimento ao vício. Só assim poderemos ter a certeza de que ele sobreviverá a todas as intempéries e mudanças do tempo".

Essa sugestão foi unanimemente considerada boa e eles passaram a desenhar todo o conhecimento reunido pelos sacerdotes nas imagens das cartas. Estas foram distribuídas ao povo, que fez do jogo uma de suas paixões prediletas.

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História contada pelo místico francês Gérard Anaclet Vincent Encausse (Corunha, Espanha, 13 de Julho de 1865 — Paris, França, 25 de Outubro de 1916), mais conhecido pelo pseudônimo de Papus, médico, escritor, ocultista, rosacrucianista, cabalista, maçom e fundador do martinismo moderno. Transcrita da Introdução do Manual do Tarô, de Hajo Banzhaf. Editora Pensamento, 1995.

O Terremoto de Lisboa

Vocês alguma vez já tiveram que ficar esperando na farmácia, vendo o farmacêutico preparar uma receita? Ele pesa as substâncias e os pozinhos grama por grama com ajuda de pequeninos pesos de metal, até chegar à dose certa para fazer o medicamento. Pois da mesma forma que o farmacêutico, assim faço eu aqui quando vou contar alguma coisa para vocês no rádio. Os meus pesos são os minutos, e eu preciso medir exatamente o quanto disso e o quanto daquilo vou usar para chegar à mistura correta. “Ora essa!” vocês vão dizer. Se o senhor vai contar sobre o terremoto de Lisboa, então que comece pelo princípio. E então continue contando o que aconteceu depois. Mas se eu fosse contar dessa forma, vocês não achariam muita graça. As casas indo abaixo, uma após a outra, as famílias perecendo, uma após a outra, o horror do incêndio se espalhando por toda a parte, da água, a escuridão e os saques, os gemidos dos feridos e as lamentações daqueles que procuravam por seus parentes – quem gostaria de escutar só essas coisas? – que afinal são as mesmas de qualquer catástrofe natural de grandes proporções.

Mas o terremoto que destruiu Lisboa no dia 1º de novembro de 1755 não foi apenas uma calamidade como tantas outras, ele foi, em muitos aspectos, um acontecimento singular e espantoso. E é sobre isso que quero contar a vocês. Antes de tudo, foi um dos maiores e mais devastadores terremotos que já ocorreram na história. Mas não foi só por isso que a tragédia comoveu e atingiu o mundo inteiro naquele século. A destruição de Lisboa, naquela época, seria o equivalente hoje, à destruição de Chicago ou Londres. Na metade do século XVIII Portugal vivia o apogeu de seu poder colonial. Lisboa era um dos centros comerciais mais ricos do mundo; seu porto, situado na foz do rio Tejo, passava o ano inteiro cheio de navios e o cais era repleto de imensas casas de comércio de negociantes ingleses, franceses e alemães, principalmente de Hamburgo. A cidade contava com mais de 30.000 casas e uma população de mais de 250.000 habitantes, dos quais, aproximadamente, um quarto perdeu a vida neste terremoto. A corte do rei era famosa por sua severidade e seu esplendor, e muitos relatos publicados em Lisboa nos anos anteriores ao terremoto nos contam sobre o estranho ar de solenidade das cerimônias, quando, por exemplo, nas noites de verão os membros da corte e seus familiares chegavam em suas carruagens ao principal centro da cidade, a Praça do Rossio, reuniam-se e conversavam informalmente por alguns instantes, sem descer do veículo. A ideia que se fazia do rei de Portugal era a de um homem tão superior, que um dos folhetos distribuídos em toda Europa com descrições detalhadas da tragédia, sequer foi capaz de conceber que um rei de tamanha grandeza pudesse ter sido atingido por tal fatalidade.

 Mas da mesma forma que só se conhece a dimensão do desastre [assim escreve este estranho jornalista] quando tudo já passou, assim podemos também fazer ideia da lastimável e terrível situação quando pensamos que um grande rei passou um dia inteiro abandonado por todos em sua carruagem, com sua esposa e nas mais precárias condições.

Os folhetos, nos quais se podiam ler coisas do gênero, eram o equivalente dos jornais de hoje em dia. Quem conseguia, colhia junto às testemunhas oculares as informações mais detalhadas possíveis, mandava imprimir e vendia. E é o trecho de um destes relatos, escrito por um inglês residente em Lisboa e que presenciou os acontecimentos, que quero ler para vocês depois.

Há uma razão especial para que este acontecimento tenha comovido as pessoas de forma tão profunda, fazendo com que até 100 anos mais tarde ainda circulassem inúmeros panfletos com relatos sobre a tragédia. É que, por sua amplitude, este foi o maior de todos os terremotos de que já se tinha ouvido falar. Ele foi sentido de toda Europa até a África, e calculou-se que com seus prolongamentos mais distantes chegou a abranger uma área de dois milhões e meio de quilômetros quadrados. Os tremores mais intensos alcançaram desde a costa do Marrocos, por um lado, até à costa da Andaluzia e da França, pelo outro. As cidades de Cádiz, Jerez e Algeciras foram quase completamente destruídas. Segundo uma testemunha, as torres da catedral de Sevilha tremeram como varas de bambu. Os tremores mais violentos, contudo, se propagaram pelo mar. Da Finlândia até à Indonésia foram sentidas fortes turbulências nas águas, e calcula-se que o tremor do oceano propagou-se desde a costa portuguesa até à foz do Elba numa velocidade espantosa em quinze minutos. Isso é o que foi registrado no momento do desastre. Mas o que mexeu mais profundamente com a imaginação das pessoas foram os fenômenos naturais observados semanas antes da catástrofe, os quais foram, com razão, compreendidos como sinais da futura tragédia. Em Locarno, no sul da Suíça, duas semanas antes do terremoto, vapores surgiram de debaixo da terra, transformando-se duas horas depois numa névoa vermelha que ao anoitecer caiu dos céus em forma de uma chuva púrpura. Diz-se que a partir de então foram observados na Europa ocidental terríveis furacões, acompanhados de chuvas torrenciais e inundações. Oito dias antes do tremor, o solo na região ao redor de Cádiz ficou coberto por uma enorme quantidade de vermes.

Ninguém mais do que o grande filósofo alemão Immanuel Kant, de quem vocês talvez já tenham ouvido falar, se interessou por estes estranhos fenômenos. Nesta época ele era um jovem de 24 anos, nunca havia saído nem jamais sairia de sua cidade natal, Königsberg, mas com um zelo impressionante recolheu todas as notícias que pôde encontrar sobre este terremoto, e o pequeno livro que ele redigiu sobre o fato marcou o início da geografia científica na Alemanha, e sem duvida, o início da sismologia. Gostaria de contar a vocês sobre a trajetória dessa ciência, desde aquela descrição do terremoto de 1755 até os dias de hoje. Mas preciso agir com cautela, para que o nosso amigo inglês não se sinta pressionado pelo tempo e eu possa ler seu relato sobre o que viu do terremoto. Já vão 150 anos que ninguém lhe dá atenção e agora, quando tem a oportunidade de falar, ele aguarda impaciente e me autoriza a contar a vocês apenas algumas palavras sobre o que sabemos dos terremotos. Mas antes de tudo: a coisa não é como vocês imaginam. Pois eu aposto que se nós déssemos uma parada agora e eu pedisse a vocês que me descrevessem como é um terremoto, vocês pensariam primeiramente nos vulcões. É verdade que as erupções vulcânicas estão frequentemente associadas a um terremoto, ou pelo menos são anunciadas por eles. Assim, ao longo de 2000 anos, dos gregos antigos a Kant e em diante, até por volta de 1870, as pessoas acreditaram que os terremotos se originavam de gases e vapores ardentes do interior da Terra. Mas quando se passou a investigar as coisas com instrumentos de cálculo de uma precisão que vocês sequer podem imaginar – nem eu – e quando se pôde conferir tudo, chegou-se a uma conclusão completamente diferente, ao menos sobre os grandes terremotos, como o que se abateu sobre Lisboa. Eles não se originam do mais profundo interior da Terra, que até hoje se imagina ter uma forma líquida, ou melhor, uma espécie de lama ardente, mas sim de fenômenos que ocorrem na crosta terrestre. A crosta terrestre é uma camada de aproximadamente 3000 km de espessura, em constante instabilidade. As massas se encontram em constante deslocamento, sempre buscando chegar a um equilíbrio. Algumas das causas das perturbações neste equilíbrio são conhecidas, outras ainda precisam ser descobertas através de pesquisa exaustiva. Até onde se sabe, pode-se afirmar que as transformações mais importantes se dão pelo constante resfriamento da Terra. Através dele surgem enormes tensões nas massas rochosas, tensão esta que acaba despedaçando essas massas rochosas, que se deslocam até encontrar um novo equilíbrio, o que nós sentimos como um terremoto. Outra causa das transformações é a erosão das montanhas, que consequentemente se tornam mais leves e depositam-se no fundo do mar que, então, fica mais pesado. Tempestades, principalmente aquelas que caem no outono, fazem também a superfície da Terra estremecer e, por fim, está sendo constatado o efeito da atração de corpos celestes sobre a superfície do nosso planeta. Mas, vocês vão dizer: se é assim, a Terra está tremendo o tempo todo. Vocês têm razão, é assim mesmo. A altíssima precisão dos instrumentos de sismologia de hoje em dia – só na Alemanha temos 13 observatórios de sismologia em diversas cidades –, faz com que estes aparelhos estejam sempre indicando alguma alteração, o que quer dizer: a Terra está sempre tremendo, só que de uma forma que nós geralmente não percebemos.

Tanto pior quando de repente se pode perceber este tremor olhando para um céu límpido: para um céu límpido, literalmente. “Pois”, assim descreve o nosso amigo inglês, a quem finalmente damos a palavra:

o sol brilhava com todo o seu esplendor. O céu, completamente limpo e claro, não dava o menor sinal de qualquer fenômeno natural quando entre 9 e 10 horas da manhã, enquanto eu estava sentado à escrivaninha, fui de repente surpreendido por um movimento da mesa que eu não sabia explicar de onde vinha. Enquanto eu tentava entender o que acontecia, a casa tremeu de cima a baixo. Debaixo da terra ecoou um trovão, como se uma tempestade estivesse caindo bem longe dali. Eu rapidamente larguei a pena sobre a mesa e dei um salto. O perigo era enorme, mas eu ainda tinha esperança de sair ileso daquela situação. Só que no instante seguinte já não havia mais qualquer dúvida. Ouvi um estalo terrível, como se todos os prédios da cidade estivessem desmoronando, os cômodos de minha casa balançaram tão forte que tudo foi arremessado ao chão de uma só vez. A todo instante eu achava que seria fatalmente atingido por alguma das enormes pedras que voavam das paredes vindo abaixo, enquanto as vigas do teto pareciam flutuar no ar. Porém, neste momento a escuridão tomou conta do céu a tal ponto que era impossível enxergar qualquer coisa. O cenário era como o das trevas do Egito ⁷⁵ , ou por causa da imensa poeira que subiu com o desmoronamento das casas, ou porque uma massa de vapor de enxofre subia de debaixo da terra. Enfim, a noite voltou a ficar clara e a violência dos tremores diminuiu. Consegui me acalmar um pouco e olhei em volta. Percebi que minha vida havia sido salva por um mero golpe do acaso. Pois se eu estivesse vestido, com certeza teria saído correndo para a rua e seria fatalmente atingido por um dos prédios que desmoronavam. Rapidamente calcei os sapatos, vesti o roupão e me apressei até a rua em direção ao cemitério da igreja de São Paulo, uma área mais elevada onde eu acreditava que estaria a salvo. As pessoas não conseguiam nem reconhecer a rua onde moravam, muitas sequer sabiam responder o que havia acontecido com elas, tudo e todos estavam dispersos e ninguém sabia aonde tinham ido parar seus pertences ou seus familiares. Na elevação onde se situava o cemitério da igreja pude então testemunhar o cenário de uma tragédia: até onde meus olhos alcançavam eu podia ver uma enorme quantidade de barcos flutuando e batendo uns contra os outros, como se a mais violenta tempestade estivesse caindo. De uma vez só o imenso cais às margens do rio afundou arrastando junto todas as pessoas que pensavam estar em segurança ali. Nesse mesmo instante, os barcos e veículos onde tanta gente ia buscar refúgio foram tragados pelo mar.

Através de outros relatos sabemos que, aproximadamente uma hora após o segundo e mais devastador tremor, aquela monstruosa onda de 20 metros que o inglês tinha visto de longe se abateu sobre a cidade. Quando a onda refluiu para o mar, deixou o leito do Tejo seco. O recuo da onda foi tão violento que arrastou junto toda a água do rio. E assim conclui o inglês:

Quando a noite desceu sobre a cidade devastada, ela parecia estar debaixo de um mar de chamas: a claridade era tanta, que se podia até ler uma carta. As chamas subiam aos céus em pelo menos 100 pontos da cidade e queimaram sem cessar durante seis dias, devorando tudo aquilo que o terremoto havia deixado intacto. Petrificados pela dor, milhares olhavam fixamente para elas, enquanto mulheres e crianças imploravam pela ajuda dos anjos e de todos os santos. Enquanto isso, a terra continuou a tremer, com maior ou menor intensidade, às vezes até por 15 minutos sem parar.

Eis então o que temos sobre o dia desta fatalidade, o 1º de novembro de 1755. O desastre é uma das raras tragédias diante das quais a humanidade se mostra tão desamparada quanto o era há 170 anos. Mas a técnica irá encontrar aqui também suas formas de remediar as coisas, ainda que percorrendo os desvios das previsões. Por enquanto, ao que parece, os órgãos dos sentidos de alguns animais ainda são com certeza mais eficazes que os nossos instrumentos de alta precisão. Os cães, por exemplo, demonstram uma agitação tão evidente dias antes de um terremoto que são utilizados nos observatórios de sismologia em regiões onde há incidência de tremores. E assim meu tempo de 20 minutos se passou, e eu espero que não tenha sido muito longo para vocês.

WALTER BENJAMIN. A Hora das Crianças: narrativas radiofônicas. 1927 / 1932.

Tradução: Aldo Medeiros. Nau Editora. 2019.

Imagem: Alegoria ao Terremoto de 1755, por João Glama Strobërle. Circa 1755. Museu Nacional de Arte Antiga. Wikipédia.

Sunday, September 22, 2024

22 de Setembro de 2016

BICHOS ESCROTOS

Dia 25 de fevereiro do ano passado, Guido Mantega e sua mulher foram hostilizados no Hospital Albert Einstein. Salvo engano, foi o primeiro de uma série de escrachos em lugares públicos a figuras ligadas ao PT. A mídia, claro, divulgou à farta. O vídeo de celular viralizou. No Facebook circulou este relato, postado por alguém de nome Ana: “Ele estava acompanhado de uma senhora e por isso não quis baixar o nível mas não consegui me segurar. Enquanto descíamos, em que o elevador parou em vários andares, perguntei aos demais passageiros se não estavam sentindo um cheiro muito ruim. Todos se tocaram da indireta e começaram a abanar seus narizes, comentando entre uns com os outros que realmente, o fedor estava insuportável”. O juiz Moro mandou prender Mantega no mesmo hospital, no momento em que a esposa do ex-ministro, que em 2015 fazia exames, entrou para cirurgia. Um círculo se completa, ao conectar o assédio moral do grupo e a ação da autoridade constituída. Moro sabe como ninguém usar a opinião pública a seu favor formalizando aquilo que a horda alimenta como fantasia. Não foi casual a "indireta" do mau cheiro. Moro e o rebanho personificam os personagens brancos descritos na música A Mão da Pureza, do negro Gilberto Gil. "Corrupto" para o bando do alpha male Moro é o contrário de "puro" e não de "honesto". E puro é sempre, e apenas, o igual. Qualquer outra alternativa "corrompe". Tem cheiro de podre. Não houve nada de espontâneo na ação da caterva, tampouco pode ser coincidência mandar prender Guido Mantega no point inaugural dos ataques a petistas. Nos dois casos o que se vê é um sentido atávico, primitivo, de propagação de mensagens entrando em funcionamento. Não precisa combinar. Esses animais se localizam "entre uns com os outros" pelo faro.

Friday, September 20, 2024

Sobre a Escrita

Meu quarto na casa de Durham ficava no segundo andar, e o teto era inclinado. À noite eu ficava deitado na cama — se me levantasse subitamente, podia bater a cabeça de jeito — e lia sob a luz de um abajur que projetava sombras de jiboias no teto. Às vezes, os únicos sons da casa eram o sibilar da calefação e os ratos andando no sótão; às vezes, por volta da meia-noite, minha avó passava uma hora gritando para que alguém fosse dar uma olhada em Dick — ela temia que ele não tivesse sido alimentado. Dick, o cavalo de minha avó na época em que era professora, estava morto havia pelo menos quarenta anos. Havia uma escrivaninha do outro lado do quarto, uma velha máquina de escrever Royal e uns cem livros, a maioria de ficção científica, enfileirados ao longo do rodapé. Na escrivaninha havia uma Bíblia, que ganhei por memorizar versículos na Juventude Metodista, e uma vitrola Webcor com sistema de troca automática de discos e prato coberto de veludo verde. Era nela que eu ouvia meus discos, a maioria em 45 rotações, de Elvis, Chuck Berry, Freddy Cannon e Fats Domino. Eu gostava do Fats, ele sabia como agitar o público e dava pra ver que se divertia tocando.

Quando recebi a carta de recusa da Alfred Hitchcok's Mistery Magazine, bati um prego na parede sobre a Webcor, escrevi Selos Felizes* na carta e espetei lá. Depois me sentei na cama e fiquei ouvindo Fats Domino cantar I'm Ready. Eu me senti muito bem, na verdade. Quando ainda se é jovem demais para fazer a barba, o otimismo é uma reação mais do que legítima ao fracasso.

CURRÍCULO / 16. Sobre a Escrita. © 2000 Stephen King. Tradução de Michel Teixeira. Editora Suma, 2021, 12ª reimpressão.

* O título da história recusada.

📷: Stephen King, o teto inclinado, a máquina de escrever e The Glass Floor, sua primeira história publicada. A foto, que aparece na contracapa das edições norte-americanas de Os Justiceiros, foi tirada e revelada por Dave, irmão mais velho de King.

Friday, September 13, 2024

Bota-fora

Nas ruas de Roma não faltava quem dissesse que bom mesmo era o tempo do Mussolini, quando os trens não atrasavam um só minuto. Meus pais estavam longe de pensar assim, mas a notícia da greve dos ferroviários nos forçou a antecipar os planos de partida: em vez de tomarmos o trem noturno para Gênova, um micro-ônibus nos levaria numa viagem bem mais demorada. Minha mãe no fim das contas até gostou, pois durante o dia teríamos belas paisagens da Úmbria e da Toscana para admirar. E às vésperas do nosso bota-fora começou o entra e sai de carregadores lá em casa para encaixotar e embarcar num caminhão de mudança a livralhada do meu pai, os vidros de Murano, os objetos mais volumosos ou pesados. Fiz questão de acompanhar a embalagem da minha bicicleta, e nos caixotes com a vitrola e os álbuns de discos minha irmã mais velha mandou colar a etiqueta FRAGILE. O violão ela não despachou, iria para cima e para baixo com ele a tiracolo.
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Bambino a Roma. © 2024, Chico Buarque. Companhia das Letras.

13 de setembro de 2022

Poemixo RÁ RÉ RI RÓ RUA

Jantamos o Waack
Fomos a 51% no Ipec
O Ciro deu chilique 
E o Bozo chamou o reboque
Bóra engrossar o batuque

Subir no palanque
Tomar um pileque
Chover no piquenique,
Nossa tropa é de choque,
Desses mother fuckers

Essa maldita claque
Essa Seita Cheque
Reis do trambique
Bando de escroques
Profissionais do truque

Ressoou o atabaque 
Nosso time é de craques 
Vam' pro ataque
Tic tac tic tac tic tac

Aaaaaah, moleque!
Aperta o rec
Solta o calhambeque
Na ladeira, sem breque

Bate o repinique
Maltrata a psique
Dos brega-chiques
Nóis é bolchevique

O comitê ad hoc
Criado pra dar uns croques,
Do Chuí ao Oiapoque,
No quengo desses lóki

Poços de recalque
Não há quem eduque
O carnívoro buquê
Esses vermes de Facebook



Sunday, September 08, 2024

Maninha

Minha irmã mais velha morreu sem saber que eu enfiava a cara entre suas saias e vestidos, assim que ela saía para as aulas de arte. Ela escondia o violão atrás dos cabides no fundo do guarda-roupa, e só bem mais tarde eu compreenderia que todo músico tem ciúme do seu instrumento. Ciúme ainda mais justificado quando se trata de um violão, instrumento que você põe no colo, apoia na coxa, abraça contra o peito e tange com a ponta dos dedos. Eu observava minuciosamente o movimento dos dedos da minha irmã enquanto ela tocava, mas uma vez sozinho não conseguia tirar um som decente. Passava horas diante do espelho tentando reproduzir os acordes dela, e me dava raiva de não ter a habilidade dos seus dedos finos com unhas de esmalte vermelho. Sei que minha irmã não me negaria umas aulas, desde que eu comprasse um violão de principiante só para mim, mas para tanto teria de vender minha bicicleta. Foi assim que desisti da música e nunca mais vasculhei o guarda-roupa da minha irmã. Minto, às vezes buscava ali dentro um maço de Chesterfield, e diante do espelho imitava sua boca soltando rodelas de fumaça.

Bambino a Roma. © 2024, Chico Buarque. Companhia das Letras.