Saturday, October 18, 2025

18 de outubro de 2016


LUZ, CÂMERA, AÇÃO

O cinema americano é repleto de advogados. O advogado cai bem para a tradição hollywoodiana porque encarna convincentemente a solitária jornada do herói. No mais das vezes ele representa nos filmes a experiência do homem comum em luta pela restauração da normalidade da lei. Sempre que o equilíbrio do mundo se vê abalado, os roteiros americanos escalam um "anybody" para protagonista do drama que põe de volta as coisas no lugar. O cowboy, o soldado, o policial, o professor, o jornalista e tantos outros, cada um à sua maneira, traduzem a capacidade que o indivíduo tem de tornar-se responsável pela mobilização de uma verdadeira teia de ações e reações, cujas consequências são tão imprevisíveis quanto inevitáveis. O happy end há tempos deixou de ser obrigatório, mas segue como o desfecho mais frequente para essa encenação do mito do eterno retorno à ordem natural da sociedade. O advogado, então, é aquele que ao tangenciar os limites estritos do que é considerado legal, realça as contradições sistêmicas da Justiça enquanto instituição. É o esquema dramático grego por excelência que Hollywood sabe, como ninguém, atualizar, diluindo-o na medida exata da catarse de entretenimento.

A arte do roteiro americano tem, porém, par a par com a construção das narrativas universalizantes e arquetípicas, seu viés narcisista. Hollywood não consegue evitar ser confessional. E, sendo a locomotiva da segunda, quiçá primeira, mais importante indústria dos EUA, odeia advogados e seus milionários "casos". Steven Spielberg é especialista em zombar deles incluindo menções em cenas secundárias de seus blockbusters. Em 'O Parque dos Dinossauros' um homem em pânico tenta se esconder de um monstro pré-histórico num prosaico banheiro químico. Farejado, é pego em pose ridícula, de cócoras sobre o vaso sanitário. Vira comida, sem piedade. Sua profissão? Advogado. Num outro filme, conta-se a seguinte piada: "Sabiam que estão substituindo as cobaias por advogados em pesquisas científicas? São dois os motivos: um, o pessoal do laboratório se apega menos. Depois, tem coisa que rato não topa fazer".

A relação de amor e ódio que Hollywood mantém com os advogados conta muito do ethos de um país que, ao mesmo tempo, se ergue sobre a crença emancipatória contida na defesa da igualdade de direitos e mantém em funcionamento as mais cruéis e genocidas práticas dentro de seu próprio território. O advogado - de filme - corporifica o Davi que vence, contra todas as expectativas, o gigante. O advogado da vida real é, para o big business estadunidense, a figura que pode roer-lhe pedaços, a pequena ameaça que, se não destrói, tem a manha de irritar profundamente. O personagem advogado mobiliza para a ação, é político, lidera processos. O advogado de carne e osso, pela via jurídica, "abre" processos, "move" ações.

Em comparação, o cinema brasileiro que, cada vez mais, adere ao mainstream de roteiro, fotografia e montagem de padrão hollywoodiano, já tem justiceiros, novos ricos, seres magicamente transformados, incorreção política, espiritismo e toda sorte de clichês narrativos, mas, salvo engano, nenhum advogado. A adoção de fórmulas na arte, ou, pelo menos, na comunicação, esbarra no limite do incompreensível. O Judiciário brasileiro é marcado, antes de mais nada, pela exclusividade do acesso, seja para o usuário ou para o profissional. Sua mais recente metamorfose acontece, acrescente-se, pela valorização dos concursos públicos e os concursos, ao restringirem, pela dificuldade das provas, os reais concorrentes a gente que vem de histórias de vida privilegiadas, acabaram por fortalecer uma espécie de casta encastelada no Estado. Uma coisa é imitar um filme americano de guerra de gangues numa favela do Rio, como 'Cidade de Deus'. Ou vestir como policial um personagem atormentado por dilemas shakespearianos e assim liberá-lo para cometer todo tipo de atrocidades, como em 'Tropa de Elite'. No Brasil, o advogado herói é uma espécie de impossibilidade estatística. Seria tão verossímil quanto um astronauta, ou um samurai tupiniquim. A Justiça no Brasil reforça abertamente nosso milenar patrimonialismo. Não temos, entre nós, o mito fundador da equidade. Como se Davi não tivesse nunca a chance de encontrar com Golias: falta o campo de batalha. O Judiciário tem a forma, não de um campo, mas de um enorme muro sem brechas. No filme de advogado made in Brazil, baseado em fatos reais, a gente morre no fim. Do lado de fora. cai bem para a tradição hollywoodiana porque encarna convincentemente a solitária jornada do herói. No mais das vezes ele representa nos filmes a experiência do homem comum em luta pela restauração da normalidade da lei. Sempre que o equilíbrio do mundo se vê abalado, os roteiros americanos escalam um "anybody" para protagonista do drama que põe de volta as coisas no lugar. O cowboy, o soldado, o policial, o professor, o jornalista e tantos outros, cada um à sua maneira, traduzem a capacidade que o indivíduo tem de tornar-se responsável pela mobilização de uma verdadeira teia de ações e reações, cujas consequências são tão imprevisíveis quanto inevitáveis. O happy end há tempos deixou de ser obrigatório, mas segue como o desfecho mais frequente para essa encenação do mito do eterno retorno à ordem natural da sociedade. O advogado, então, é aquele que ao tangenciar os limites estritos do que é considerado legal, realça as contradições sistêmicas da Justiça enquanto instituição. É o esquema dramático grego por excelência que Hollywood sabe, como ninguém, atualizar, diluindo-o na medida exata da catarse de entretenimento.

A arte do roteiro americano tem, porém, par a par com a construção das narrativas universalizantes e arquetípicas, seu viés narcisista. Hollywood não consegue evitar ser confessional. E, sendo a locomotiva da segunda, quiçá primeira, mais importante indústria dos EUA, odeia advogados e seus milionários "casos". Steven Spielberg é especialista em zombar deles incluindo menções em cenas secundárias de seus blockbusters. Em 'O Parque dos Dinossauros' um homem em pânico tenta se esconder de um monstro pré-histórico num prosaico banheiro químico. Farejado, é pego em pose ridícula, de cócoras sobre o vaso sanitário. Vira comida, sem piedade. Sua profissão? Advogado. Num outro filme, conta-se a seguinte piada: "Sabiam que estão substituindo as cobaias por advogados em pesquisas científicas? São dois os motivos: um, o pessoal do laboratório se apega menos. Depois, tem coisa que rato não topa fazer".

A relação de amor e ódio que Hollywood mantém com os advogados conta muito do ethos de um país que, ao mesmo tempo, se ergue sobre a crença emancipatória contida na defesa da igualdade de direitos e mantém em funcionamento as mais cruéis e genocidas práticas dentro de seu próprio território. O advogado - de filme - corporifica o Davi que vence, contra todas as expectativas, o gigante. O advogado da vida real é, para o big business estadunidense, a figura que pode roer-lhe pedaços, a pequena ameaça que, se não destrói, tem a manha de irritar profundamente. O personagem advogado mobiliza para a ação, é político, lidera processos. O advogado de carne e osso, pela via jurídica, "abre" processos, "move" ações.

Em comparação, o cinema brasileiro que, cada vez mais, adere ao mainstream de roteiro, fotografia e montagem de padrão hollywoodiano, já tem justiceiros, novos ricos, seres magicamente transformados, incorreção política, espiritismo e toda sorte de clichês narrativos, mas, salvo engano, nenhum advogado. A adoção de fórmulas na arte, ou, pelo menos, na comunicação, esbarra no limite do incompreensível. O Judiciário brasileiro é marcado, antes de mais nada, pela exclusividade do acesso, seja para o usuário ou para o profissional. Sua mais recente metamorfose acontece, acrescente-se, pela valorização dos concursos públicos e os concursos, ao restringirem, pela dificuldade das provas, os reais concorrentes a gente que vem de histórias de vida privilegiadas, acabaram por fortalecer uma espécie de casta encastelada no Estado. Uma coisa é imitar um filme americano de guerra de gangues numa favela do Rio, como 'Cidade de Deus'. Ou vestir como policial um personagem atormentado por dilemas shakespearianos e assim liberá-lo para cometer todo tipo de atrocidades, como em 'Tropa de Elite'. No Brasil, o advogado herói é uma espécie de impossibilidade estatística. Seria tão verossímil quanto um astronauta, ou um samurai tupiniquim. A Justiça no Brasil reforça abertamente nosso milenar patrimonialismo. Não temos, entre nós, o mito fundador da equidade. Como se Davi não tivesse nunca a chance de encontrar com Golias: falta o campo de batalha. O Judiciário tem a forma, não de um campo, mas de um enorme muro sem brechas. No filme de advogado made in Brazil, baseado em fatos reais, a gente morre no fim. Do lado de fora.

Tuesday, October 14, 2025

14 de outubro de 2015


 AS YOU LIKE IT

A manchete de hoje poderia ter sido:

"Apenas 33% dos leitores da Folha desaprovam a Gestão Alckmin".

Ou, então:

"67% dos leitores da Folha consideram o Congresso ruim ou péssimo".

Também cabia:

"Fernando Haddad tem 56% de reprovação entre leitores da Folha".

Ou mesmo:

"64% dos leitores da Folha acham que a crise tende a piorar nos próximos meses".

Mas, claro, a opção foi: "61% dos leitores querem renúncia de Dilma".

E apenas no subtítulo: "Pesquisa Datafolha feita - COM O PÚBLICO DA FOLHA - mostra que 77% classificam o governo como ruim ou péssimo".

Não é uma pesquisa sobre o Governo, embora pareça. É uma matéria sobre perfil de leitores do jornalão do Frias Filho.

O perfil que todo mundo já sabe qual é:

"Metade dos entrevistados (48%) tem renda familiar mensal superior a dez salários mínimos, 76% têm ensino superior, 83% são do Sudeste, quase 60% não têm partido de preferência, mas 59% votaram em Aécio Neves (PSDB) no segundo turno da eleição presidencial de 2014".

O aspecto mais relevante, sendo esta uma pesquisa de perfil de consumidor, e que, disparado, mereceria a manchete, diz respeito à percepção que o leitor tem do lugar que o jornal ocupa no espectro ideológico:

"O maior grupo de leitores (30%) posicionou a Folha como uma publicação de centro-direita. Para 26%, o jornal é de centro. Outros 22% o identificam como de direita. O jornal é visto como de centro-esquerda por 12%. E de esquerda por 5%".

A miopia política dos 5% que a classificam "à esquerda" está longe de desmentir o que já se sabe, mas a pesquisa comprova: quase 90% desses leitores altamente identificados com a linha editorial da Folha têm perfeita consciência das convicções políticas que o jornal defende. 

Na prática, os resultados da amostragem confirmam a clara via de mão dupla entre o que se publica e o que se espera que a Folha publique. Em detrimento, é claro, da proverbial imparcialidade que a propaganda anuncia há décadas.

Friday, September 19, 2025

19 de setembro de 2020


Destruição tão intensa e sistemática como a que estamos presenciando no Brasil tem, necessariamente, que atender às chamadas 'ordens superiores'. As consequências são profundas e duradouras demais para que os donos do poder não movam sequer uma palha. Passou da omissão e da conivência. É a mão nada invisível do Consórcio Golpista quem manipula ações e resultados. Isso não é uma crise. É um projeto. E tem mandante.

Se Bolsonaro chegou a ter voz ativa desde a posse, já há bom tempo foi reconduzido ao lugar do espantalho. Qual teria sido sua última ação? Forçar a saída do juiz Moro? Garantir o soldado Pazuello no ministério? Talvez, nem isso. De lá para cá tem se limitado a bater perna, bater papo e bater cabeça consigo próprio, que é o que sempre soube fazer, além de desviar dinheiro público em esquemas caseiros.

Bolsonaro virou, para o Golpe, um enorme para-raios. Tudo o que é de ruim lhe cai por cima. Salles, Damares, Guedes, Frias, Faria, Araújo e todos os congressistas, banqueiros, pastores, prefeitos, governadores golpistas e quem mais chegar, podem seguir, quase discretos, apostando na devastação, cada um no seu quadrado. Para não ser preso, ou os filhos, Bolsonaro, o ladrão sem nenhum caráter, topa qualquer combinado.

O objetivo final do Golpe, dá até medo de imaginar. Ao contrário do 'presidente', que procura centralizar tudo e vive em função de seu gueto, as forças da reação nacional têm capilaridade. Muita. Estão por toda parte. Bolsonaro funciona como um anteparo para o monstro. É muito fácil ridicularizar tudo o que faz porque ele é autenticamente ridículo. Mas não há nada de cômico no que estamos vivendo.

Bolsonaro não seria capaz de articular roteiro tão trágico de destruição. E é o que está acontecendo com o Brasil. Um desmanche. Da natureza, das instituições, do patrimônio público, da sociedade civil... O que você pensar está sendo destruído. Completa destruição.

imagem: Lalo de Almeida / Folhapress

Thursday, September 18, 2025

Ministro das Finanças de Israel diz que Gaza é 'mina de ouro imobiliária'


"PRIMEIRA ETAPA"

O ministro das Finanças israelense, Bezalel Smotrich, de extrema direita, disse nesta quarta-feira que a Faixa de Gaza é uma potencial "mina de ouro" imobiliária e que está em negociações com os Estados Unidos sobre como dividir o enclave costeiro ao fim dos ataques, segundo o jornal israelense Times of Israel. O ministro está entre as autoridades israelenses que poderá ser sancionadas pela União Europeia.

Em discurso numa conferência imobiliária em Tel Aviv, o ministro destacou que a oportunidade "se paga" e que ele "já iniciou negociações com os americanos".
 
— Pagamos muito dinheiro por esta guerra. Precisamos ver como vamos dividir a terra em porcentagens. A demolição, a primeira etapa da renovação da cidade já foi feita. Agora precisamos construir — afirmou Smotrich. — Há um plano de negócios, elaborado pelas pessoas mais profissionais daqui, que está na mesa do presidente [dos EUA, Donald] Trump.

(...)

Também nesta quarta-feira, Israel anunciou a abertura de uma nova rota de passagem temporária para permitir a fuga de civis palestinos da Cidade de Gaza, um dia após o início da esperada grande ofensiva por terra (anunciada ao longo dos últimos meses).

Segundo a AFP, um grande número de palestinos foi visto fugindo da cidade por qualquer meio, enquanto o Exército israelense continuava sua ofensiva terrestre, matando dezenas em ataques.

A ONU estima que a Cidade de Gaza era o lar de quase um milhão de pessoas no final de agosto. A nova ofensiva, porém, provocou mais um êxodo palestino nos últimos dias — embora muitas pessoas tenham dito que não pretendem sair da cidade, por considerar que não existe lugar seguro no enclave.

Na terça-feira, a Comissão Internacional Independente de Investigação da ONU, que reúne investigadores, mas não fala em nome das Nações Unidas, afirmou que "um genocídio está acontecendo em Gaza", citando o deslocamento forçado de pessoas como um dos elementos avaliados.

Israel rejeitou o relatório, acusando-o de ser "tendencioso e mentiroso", além de usar dados do Hamas. O governo israelense também pediu uma dissolução "imediata" da comissão investigadora.

HISTÓRICO DE AMEAÇAS

Esta não é a primeira vez que Smotrich faz planos pela anexação do enclave ao território israelense. Em agosto, o ministro disse em entrevista que estava trabalhando para restabelecer os antigos assentamentos israelenses de Ganim e Kadim, no norte da Cisjordânia, ambos evacuados e desmantelados durante a retirada de Israel em 2005.

Numa conferência intitulada "A Riviera de Gaza – da visão à realidade", em julho, ele afirmou que Gaza se tornaria uma "parte inseparável do Estado de Israel" e que sua visão tem o apoio do presidente americano Donald Trump. Em maio, ele havia garantido que o plano era deixar Gaza "totalmente destruída" e deslocar os palestinos para uma faixa de terra na região sul.

Em fevereiro, Trump disse que os EUA tomariam Gaza, realocariam seus moradores e a transformariam na "Riviera do Oriente Médio". Os planos do presidente americano foram rejeitados pelos palestinos e pela maior parte da comunidade internacional, além de autoridades de ambos os partidos nos EUA. Segundo o jornal americano The Washington Post, a proposta continua de pé. Em reportagem publicada no fim de agosto, o jornal confirmou que Trump está considerando uma proposta para a reconstrução de Gaza após a guerra. O projeto prevê colocar a Faixa de Gaza sob controle americano por uma década e pagar cerca de um quarto da população palestina para se mudar, muitos deles permanentemente.

O Globo e agências internacionais — Tel Aviv, Israel 17/09/2025

Monday, September 08, 2025

8 de setembro de 2018

Em meio ao vozerio quase histérico em torno do ataque a faca sofrido pelo presidenciável Jair Bolsonaro, a única narrativa que percebo ter tomado consistência e se firmado é a da 'armação'. Não que isso informe sobre o ato em si. Antes parece consequência da imagem construída pelo próprio candidato e seus filhos-clones, a saber, a de farsantes. Da negação da política à macheza, da patente militar à Wal do Açaí, tudo no candidato tem indícios de embuste. Seus seguidores, e não são poucos, contribuem para a consolidação da fama: atuam nas redes - um lugar 'virtual' - disseminando fakes, trolls, hoaxes, entre outras mutretas. Só mesmo um enorme conluio das forças de regressão brasileiras poderá eleger alguém tão indigesto. Pois, além de gerar a desconfiança típica que o demagogo sempre gera, Bolsonaro também transmite a certeza de ser o representante mais legítimo da misoginia, do racismo, da homofobia e todo tipo de violência que o Brasil vem, a duras penas, tentando enfrentar. 80% dos eleitores não demonstram interesse pela bazófia de Jair, família e pseudo-fanáticos. As pesquisas, ao contrário, apontam que o projeto capitaneado (perdoe o trocadilho) por ele é o preferido entre os homens brancos, ricos e escolarizados. O povo, o proverbial 'povão', quer que Bolsonaro 'se lasque'. O mesmo povão que, sabiamente, elegeu Getúlio, Juscelino, Lula e Dilma, contra o desejo dos dominadores. Se depender da vontade popular, uma chapa de títeres tão reacionários, entreguistas e fisiológicos quanto Bolsonaro & Mourão não se elege. Mas o momento pelo qual estamos passando não se parece com aqueles em que se saíram vencedores Getúlio, Juscelino, Lula e Dilma (assim como Dutra, Jânio, Collor e FHC). Estamos em pleno Golpe. A frágil ordem democrática foi afrontada. E, como inúmeras vezes antes na história do país, a potência que só a coletividade é capaz de mobilizar corre o risco de soterramento pela força bruta das oligarquias nacionais. O perigo não é desprezível.

Friday, September 05, 2025

... "problemática, mas acerta no diagnóstico"

EDUARDO CESAR MAIA

Discussão sobre o que é ou não literatura pode resultar banal e autoritária se não for nuançada

[RESUMO] Professor comenta discussão literária desencadeada após entrevista de Aurora Bernardini na Folha. Embora discorde da posição da tradutora a respeito do que seria ou não literatura, avalia que ela faz um diagnóstico correto ao apontar uma prevalência do assunto sobre o estilo na literatura atual. Para ele, precisamos renovar as perspectivas desse debate para superar essa disjunção equivocada de forma e conteúdo.

A mais recente polêmica no nosso campo literário esconde certas nuanças que, acredito, podem ser mais bem exploradas com certo afastamento do clima apaixonado e pouco reflexivo dos debates de rede social.

Em entrevista para a Folha, a professora e tradutora Aurora Fornoni Bernardini defende que a literatura contemporânea ficou mais pobre ao privilegiar o conteúdo em detrimento da forma.

Para ela, obras que trocam "significante por significado" podem até ser interessantes, mas não se qualificam como literatura de fato, pois carecem de uma preocupação estética com o estilo e a linguagem, o que caracterizaria particularmente a arte literária. A mesmíssima advertência já tinha sido feita pela ensaísta Walnice Nogueira Galvão, em termos muito parecidos, alguns meses atrás na Folha.

Tomada em sentido estrito e literal, a observação de Aurora Bernardini nos soa realmente problemática. Dizer simplesmente que Itamar Vieira Junior, Annie Ernaux e Elena Ferrante — escritores, por sinal, bastante diferentes literariamente entre si — "não são literatura", sem maiores matizações, parece-me somente uma frase de efeito pinçada e colocada em destaque para gerar engajamento virtual.

Se não compreendermos previamente certos debates históricos e teóricos em estética e teoria literária, a respeito dos quais certamente a professora Aurora Bernardini está muito bem-informada, estaremos somente diante de uma banal e autoritária petição de princípio ontológica: tal coisa é ou não é, porque se enquadra ou não em minha definição desta mesma coisa.

Ao que um adversário simplesmente poderia argumentar: "mas a minha definição é outra!". Assim, o debate se enreda numa sequência anódina de apriorismos, em réplicas e tréplicas, que não ajudam em nada na iluminação da interessantíssima questão subjacente.

Ora, ninguém pode determinar definitivamente o que um conceito histórico, como o de literatura, é, foi ou será, porque os usos desse tipo de conceito flutuam temporal e geograficamente numa dinâmica que não obedece a preceitos teóricos ou metodológicos.

Com isso em mente, podemos fazer melhor proveito do interessante comentário da notável tradutora Aurora Bernardini. Disse ela: "Um fenômeno muito curioso acomete o mundo, mas o Brasil em particular: a literatura se baseia no conteúdo e esquece a forma".

Ainda que se trate de uma amplíssima generalização, estou absolutamente de acordo com o diagnóstico e com a questão crítica que ele suscita: o da parca atenção que se tem dado ao engenho imaginativo e à qualidade verbal dos textos literários, seja por parte dos autores, da crítica e, claro, dos leitores contemporâneos — tudo isso em geral, claro.

Mas aqui é preciso matizar mais uma vez a discussão. Na verdade, toda transfiguração literária do mundo pressupõe certo grau de estilização. Não existe literatura sem forma, e isso independe da qualidade literária; o que se pode questionar criticamente numa obra é como a relação entre forma e assunto é efetivamente plasmada, e que efeitos artísticos o autor logra com suas escolhas.

Nas últimas duas décadas, pude acompanhar como crítico, jornalista cultural, jurado de prêmios literários e, principalmente, como professor e pesquisador universitário na área de comunicação e letras, a avassaladora emergência desse fenômeno, que podemos nomear talvez como empoderamento temático-ideológico da literatura e dos estudos literários (chamados agora, com razão, simplesmente de estudos culturais, dada a falta de especificidade com que se trata o texto literário).

Arrisco-me a apontar duas razões para isso: o acirramento da polarização política, alimentada pelo combustível inesgotável das chamadas guerras culturais; e a cada vez menor cultura literária das novas gerações de leitores, o que ocasiona uma óbvia falta de referências e de parâmetros qualitativos.

Curiosamente, há quase 45 anos, o ensaísta José Guilherme Merquior, em As Ideias e as Formas (1981), apontava o problema oposto nas letras e na crítica literária, particularmente no Brasil, onde vicejava o "estruturalismo dos pobres".

O autor de Formalismo e Tradição Moderna (1974) acreditava que o culto formalista — que classificava como "delírio irracionalista", e que teve como modelo os movimentos vanguardistas do início do século passado — fazia com que a criação artística e, em particular, a criação literária abdicassem das ideias (do conteúdo) em nome de um esteticismo radical. Acontecia, então, uma espécie de "usurpação da ideia pela forma".

Essa obra de Merquior, uma joia que merece reedição, permanece, em um certo sentido, atualíssima, ainda que o cenário literário e teórico tenha mudado radicalmente. E digo que o ensaio segue relevante porque Merquior não apenas aponta os problemas do momento, mas sugere caminhos para a superação de uma visão dicotômica de arte; indicações, creio, que ainda podem ser úteis ao nosso tempo, ainda que a mesma dicotomia agora apareça com os sinais trocados.

Em sua autoapresentação crítica, o ensaísta já revelava a formulação central do seu livro: "O pensamento crítico que anima estas páginas não busca apenas analisar ideias e formas — procura surpreender as ideias sob as formas, e também captar a forma das ideias. Por isso não se contenta com uma abordagem puramente aditiva do estético e do ideológico; pretende descrever e julgar o seu complexo acasalamento".

Talvez tenhamos que começar a tentar discutir a questão a partir de perspectivas renovadas, ou novo vocabulário, para superarmos, ou pelo menos atenuarmos, essa improdutiva disjunção teórica entre conteúdo e expressão.

É possível que um meio para começarmos a entender melhor o que significa essa "interpenetração" ou "complexo acasalamento" entre ideias e formas apareça de maneira muito mais nítida em um outro gênero de escrita: no discurso de natureza híbrida que é o ensaio.

É, talvez, na prática do ensaísmo que fique mais evidente que o pensamento não é um exercício independente da linguagem, e que a concepção de um pensamento anterior à expressão é, em definitiva, insustentável.

Na verdade, pensar e exprimir são a mesma atividade: sem verbalização, seja em monólogo interno ou em diálogo público, não há formulação de pensamento. Em suma, pensamento e expressão do pensamento são a mesma coisa.

Por isso, em grandes ensaístas-críticos como o próprio Merquior — ou, para citar exemplos de diferentes tradições intelectuais, um Lionel Trilling, um Edmund Wilson, um George Steiner ou um Octavio Paz —, o estilo, entendido como estrutura dramática do texto, é parte inextricável da verdade que se quer expressar.

Voltando ao nosso tempo, ao diagnóstico de Aurora Bernardini e à literatura que agora viceja e apaixona os corações do público e da crítica, relatarei, para concluir, uma experiência pessoal que se relaciona com tudo o que falei acima.

Estando eu, alguns anos atrás, em meio às discussões finais para decidir qual seria o texto premiado como melhor romance nacional em um importante certame literário, fui surpreendido pela visão de quase todos os demais membros do júri de que a melhor literatura é aquela que "toca nos temas mais urgentes"; a que "registra a verdade sobre os reais problemas da sociedade"; o texto que, enfim, "desperta nossas consciências para as iniquidades da realidade brasileira".

Diante de tais pressupostos, perfeitamente justos e morais, mas que desconsideravam, na economia das obras, quaisquer considerações de ordem formal, expressiva ou estilística, aceitei que minha visão era minoritária e me dei por vencido, pois minhas premissas —que tampouco pretendem ser verdades absolutas—, no que se refere particularmente a questões artísticas, eram, e ainda são, outras.

💧

Eduardo Cesar Maia. Ensaísta e professor da UFPE. 3.set.2025.

Imagem: Abertura da Flipei, Festa Literária Pirata das Editoras Independentes, no Galpão Elza Soares, centro de São Paulo, em 6 de agosto - Rafaela Araújo / Folhapress

... "interessantes, mas não literatura"

CAROLINA AZEVEDO

Itamar, Ernaux e Ferrante são interessantes, mas não literatura, diz Aurora Bernardini

[RESUMO] Em entrevista, Aurora Fornoni Bernardini, professora aposentada da USP e tradutora renomada de italiano, inglês e russo, comenta a vinda de sua família da Itália, onde nasceu, para o Brasil, descreve o início de sua paixão pelo estudos de línguas e os atritos com a ditadura e afirma que a literatura contemporânea ficou mais pobre ao privilegiar o conteúdo e esquecer a forma.

Aos 84 anos, Aurora Fornoni Bernardini ainda traduz livros inteiros à mão. Nos cadernos de espiral sem pauta, em letra cursiva clara, adapta verso e prosa do italiano, do inglês e do russo. Sua empreitada mais recente foi a da autobiografia da escritora russa Nina Berberova, mais de 900 páginas divididas com o jornalista e tradutor Irineu Franco Perpétuo, que a editora Kalinka lança em breve

Na hora de escolher o título, Aurora insistiu na tradução direta: O cursivo é meu. Ao que a editora rebateu: Os itálicos são meus, porque hoje ninguém sabe o que é cursivo.

Nascida em Domodossola, no norte da Itália, a professora sênior de língua e literatura russa da USP conta à reportagem que trabalha muito mais desde que se aposentou, ocupando-se sobretudo de resenhas de lançamentos.

Enquanto fala sobre as "várias solicitações" das editoras, ela organiza algumas das obras que acaba de receber em sua casa, cujas estantes já estão abarrotadas de livros. Onde sobra algum espaço entre as paredes, quadros pintados ao longo de sua vida formam uma galeria de retratos de amigos e familiares, muitos dos quais já não povoam seu dia a dia.

Em busca constante por uma ocupação intelectual — "é uma espécie de vício: se não tenho uma ocupação, me sinto vazia" —, Aurora coleciona opiniões categóricas sobre o mercado editorial contemporâneo. "Um fenômeno muito curioso acomete o mundo, mas o Brasil em particular: a literatura se baseia no conteúdo e esquece a forma", afirma.

Lembrando-se de um artigo que a ensaísta Walnice Nogueira Galvão publicou na Folha, a professora defende que escritos que trocam significante por significado "podem até ser interessantes, mas não são literatura".

Seu primeiro exemplo é Torto Arado, de Itamar Vieira Junior, que ficou em segundo lugar na lista de melhores livros brasileiros de literatura do século 21, organizada pela Folha. Sua avaliação não é totalmente negativa, afinal, caracteriza o livro como "apaixonante, insólito e original" em seu conteúdo. Mas não hesita em dizer que "o autor não tem estilo particular".

Ela o compara a Umberto Eco, cujo O Nome da Rosa traduziu. O romance de sucesso global é, para Aurora, uma "obra-prima da arquitetura do conteúdo". No entanto, a professora se junta à parte mais rigorosa da crítica italiana para dizer que o estilo de Eco é "pesado, irregular e não suscita interesse". Sua conclusão é a de que "é muito raro, mas mesmo um autor que tem estilo discutível pode escrever um grande livro se relatar um conteúdo interessante o bastante".

No plano internacional, repete as críticas a Vieira Junior para falar da Nobel de Literatura Annie Ernaux e de Elena Ferrante, duas das mais conhecidas escritoras contemporâneas. Se cativam o público ao falarem de experiências acabrunhantes, como o aborto de Ernaux em O Acontecimento, ou assuntos de interesse comum, como os anos formativos de Ferrante em A Amiga Genial, para Aurora, não passam de best-sellers.

Se nenhuma das duas têm estilo o bastante para atrair a professora, a virtude aparece na medida certa na prosa da espanhola Rosa Montero. As apreciações da autora de O Perigo de Estar Lúcida movimentam algo de curioso que "dá vida ao seu estilo", mesmo quando escreve sobre o corriqueiro, defende Aurora.

O porquê da tendência conteudista acometer o Brasil, Aurora não sabe pontuar, mas cautelosamente a relaciona ao que classifica como "um exagero" por parte da crítica. "O passado não pode repercutir no presente como estão querendo. Esse fenômeno terrível do passado, a escravidão, não implica merecimentos no presente. É preciso partir da igualdade de condições de conhecimento. Não se pode dar o mérito antes das condições".

Para a professora, muita coisa melhorou no país nos últimos anos, mas a injustiça continua sendo a principal marca do cotidiano brasileiro. "O povo europeu é mais amadurecido, pois passou por guerras e revoluções, então reclama mais. Aqui, o povo é muito passivo".

Ela conta uma anedota de seu pai para ilustrar o ponto de vista. Enquanto diretor de uma fábrica na região de Carrara, ao norte da Itália, ele era constantemente intimidado por operários, que "diziam que sua cova estava pronta" e "ameaçavam dar com o sapato na cabeça dele".

Aurora lembra a história da região, por onde passava a linha gótica, uma das últimas linhas de defesa nazi-fascistas, cujo intuito era bloquear os avanços aliados durante a Segunda Guerra Mundial.

"Esse operariado, muitos deles antigos guerrilheiros, era muito sofrido", por isso combativo, diz. Tão logo foi convidado para dirigir a fábrica de cloro e soda cáustica das indústrias Matarazzo em São Paulo, quando Aurora tinha 13 anos, seu pai foi surpreendido por um operariado que "fazia fila para o abraçar no dia de seu aniversário".

Estabelecida com a família na região do rio Tamanduateí, entre São Paulo e São Caetano do Sul, Aurora logo aprendeu o português e saiu atrás de outro desafio, que encontrou na casa de uma vizinha russa disposta a ensinar-lhe sua língua. Em uma casa na rua Ibitirama, Aurora passou anos da adolescência tomando chá e estudando o livro de gramática russa escrito por Marina Dolenga ao lado da vizinha, com quem passeava pelos bairros de emigrados eslavos para treinar a língua.

Quando foi escolher a faculdade, seu pai logo a proibiu de cursar medicina. "Você vai ser professora, porque tem três meses de férias por ano", dizia. Aurora seguiu para o curso de letras na USP, onde se especializou em literatura anglófona com tese sobre Ulisses, de James Joyce.

Quase cem livros traduzidos depois, a professora encontrou-se com a prosa de Joyce mais uma vez em 2022, quando participou do Coletivo Finnegans, grupo que, liderado por Dirce Waltrick do Amarante, traduziu Finnegans Wake para a editora Iluminuras.

Com o título Finnegans Rivolta, o livro recebeu o prêmio de melhor tradução no Jabuti de 2023. Em 2004, Aurora já havia ganhado uma menção honrosa no mesmo prêmio, ao lado de Haroldo de Campos, pela tradução da coletânea Ungaretti: Daquela Estrela à Outra. Também ficou em terceiro lugar em 2007, pela tradução de "Indícios Flutuantes", da poeta russa Marina Tsvetáieva.

Logo que Aurora concluiu o curso de letras, em 1963, o professor ucraniano Boris Schnaiderman inaugurou o bacharelado em russo na USP, para o qual ela seguiu. Foi colega de Augusto de Campos e logo se tornou professora assistente de Schnaiderman. Lecionando literatura russa na universidade pública no meio da ditadura militar, Aurora conta que os colegas foram frequentemente visados pelos militares.

Ela rememora o episódio em que Schnaiderman, tradutor de Dostoiévski, Tolstói e Maiakóvski, estava lecionando quando três militares entraram armados e anunciaram a procura por um aluno.

"Boris, com aquele jeito vagaroso que tinha, disse a eles: 'Os senhores vêm aqui armados de metralhadoras enquanto nós só temos o apagador e o giz." Schnaiderman foi imediatamente levado para o Departamento de Ordem Política e Social, o Dops, o que causou alvoroço na Faculdade de Letras.

Foi Aurora quem teve a coragem de questionar aos militares o que aconteceria com o colega. Ela se aproximou do oficial com ar de ingênua, perguntando a que horas poderia ir apanhar Schnaiderman, ao que indicaram "por volta da meia-noite".

Apesar do desespero da esposa do colega, Aurora consentiu e aguardou: "À meia-noite eu fui buscá-lo no Dops. Cheguei e lá estava ele, vestido de avental branco, na frente do recinto. Nós sofremos muito, mas a juventude nos dava força para continuar", conta.

Por sua contribuição ao estudo da literatura e à tradução, Aurora recebeu em junho o prêmio Ciccillo Matarazzo per Italiani nel Mondo, ao lado do poeta, membro da Academia Brasileira de Letras (ABL) e presidente da Fundação Biblioteca Nacional, Marco Lucchesi.

Entre os vários projetos aos quais se dedica no momento, ela destaca dois. Para a versão em italiano da biografia do empresário Francesco Matarazzo, escrita por Ronaldo Costa Couto, já comprou quatro cadernos de espiral. Mas a novidade que mais lhe interessa é a publicação da coletânea de ensaios Em Busca do Quem das Coisas, do escritor, tradutor e ecologista Per Johns.

Os manuscritos herdados por Aurora partem de uma série de palestras realizadas pelo escritor de origem dinamarquesa a convite da ABL e da PUC-Rio. O livro póstumo, editado por ela, reúne pensamentos sobre a literatura — com destaque para Guimarães Rosa, cujo Grande Sertão: Veredas Johns cotraduziu, durante cinco anos, para o dinamarquês — e a natureza.

Apontando para o retrato que pintou de Johns, Aurora destaca a importância do livro, que deve sair em breve pela editora Iluminuras. Ela situa o amigo, morto em 2017, "entre os mais dotados escritores de nossa época".

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Carolina Azevedo. Jornalista, para a Ilustríssima da Folha de São Paulo. 30.ago.2025.

Imagem: Aurora Bernardini. Adriano Vizoni / Folhapress



Thursday, September 04, 2025

25 melhores livros brasileiros do século 21

BIANCA SANTANA

A lista dos 25 melhores livros brasileiros do século 21 não apenas destaca obras excepcionais, como evidencia uma possível reconfiguração do que entendemos por cânone na literatura brasileira.

Se até aqui os nomes consagrados foram quase exclusivamente de homens brancos — não, não estou esquecendo Machado de Assis —, a seleção agora apresentada aponta um novo paradigma, mais plural e, veja só, insurgente.

Defendi em minha tese de doutorado, de 2020, a autoria negra — especialmente a de mulheres negras — como uma técnica de resistência ao racismo. Ali, evidencio como a elaboração estética de mulheres negras sobre a própria existência enfrenta o dispositivo de racialidade, tal como nomeou Sueli Carneiro, inscrevendo novas epistemologias no campo literário e ampliando possibilidades de vida para a população negra brasileira, quando a política de Estado é uma política de morte.

Um Defeito de Cor é exemplo máximo dessa potência: ao narrar em primeira pessoa a vida de Kehinde, uma africana escravizada que conta sua própria história, Ana Maria Gonçalves aprofunda um paradigma de autoria no Brasil. Paradigma fundado por Maria Firmina dos Reis, Carolina Maria Jesus, Conceição Evaristo, nomeado pela própria Conceição como "escrevivência".

Mulheres negras deixamos de ser objeto da literatura para escrevermos, com nossos corpos-penas, vivências que ainda não foram suficientemente narradas. Maria, de Olhos d'Água, de Conceição, olhada no desejo de apresentar melão aos filhos, não apenas nos gritos. Primeira pessoa do singular, que é também primeira pessoa do plural.

Em Torto Arado, os corpos negros de Belonísia e Bibiana, descendentes de escravizados no sertão da Bahia, reinventam o romance social brasileiro, dando centralidade às experiências de resistência. Em O Avesso da Pele, o trauma da violência racial é narrado a partir da intimidade de personagens complexos, sem a reprodução de estereótipos fartamente reproduzidos em obras consideradas clássicas, e sem alarmismos panfletários.

A Queda do Céu inscreve na literatura brasileira a cosmovisão yanomami, em uma ruptura de barreiras entre literatura, espiritualidade, conhecimento coletivo, texto didático. Trata-se, a meu ver, de uma obra que amplia o que tradicionalmente é considerado literário.

O Sol na Cabeça, de Geovani Martins, escrito em bom pretuguês, expande a norma culta e registra novas sintaxes, que nascem das favelas, das quebradas, dos becos e dos ônibus lotados. A poesia de Um Útero É do Tamanho de um Punho, de Angélica Freitas, reinventa o lirismo a partir de experiências femininas, lésbicas, dissidentes, gordas e sujas.

É uma alegria que a lista amplie as tradições literárias brasileiras, sem perpetuar exclusões, apenas invertendo quem agora é lido.

Leite Derramado, Diário da Queda e tantos outros escritos de homens brancos têm seu valor reconhecido, como deve ser, mas agora dividindo espaço com obras de autorias historicamente excluídas. Afinal, há lugar na mesa para todo mundo sentar, já nos alertou Lélia Gonzalez, há mais de 40 anos.

É ousado, mas a lista me provoca a perceber — e apontar — uma virada no imaginário nacional. Que não é de incluir autoras negras, indígenas, periféricas ou LGBTQIA+, mas de reconhecer a multiplicidade de obras em que pulsa a literatura brasileira contemporânea. O universalismo radical de Milton Santos expresso na literatura. Oxalá se materialize na redução das desigualdades e na democratização de direitos.

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Bianca Santana

Colunista da Folha, é doutora em ciência da informação pela Universidade de São Paulo, mestra em educação e jornalista. Autora de Arruda e Guiné: Resistência Negra no Brasil Contemporâneo e Quando me Descobri Negra (Fósforo).



Conteúdo predomina sobre a forma na literatura brasileira de hoje


WALNICE NOGUEIRA GALVÃO

Triunfo da negritude, evidente na lista de melhores livros do século 21, é sintoma de movimento social de âmbito desmedido

24 de maio de 2025 / UOL

À primeira vista, parece o triunfo da negritude, sobretudo pela acumulação nos primeiros lugares. Sem dúvida, é um privilégio poder ver o Brasil se assumir como o maior país africano do mundo, disputando a primazia com a Nigéria por uns poucos milhões de habitantes.

A lista dos melhores livros deste século 21 não desmente ninguém, é apenas um sintoma. Se não bastasse, era só olhar para os programas de televisão, dos mais broncos aos mais ambiciosos, e verificar como mudaram de cor. Até na publicidade: não se faz propaganda de nada, nada mesmo, sem feições morenas.

É um movimento social de âmbito desmedido, englobando o resultado de uma lista de consulta como essa. A tendência atual da literatura brasileira, dos leitores, dos editores, dos autores, dos prêmios literários, dos seminários e congressos, dos cursos de pós-graduação, das dissertações e teses, das escolas etc. é dedicar-se à temática da negritude.

Nem é preciso dizer que a tendência é bem-vinda, já vem tarde e pode ser entendida como uma tentativa de reparação simbólica aos males não só da escravidão como também à maneira desastrada pela qual a emancipação foi feita. A mesma atmosfera predomina tanto na ficção, quanto no ensaio e nas artes.

Nota-se que de outros campos, apesar de candentes e rumorosos, mal se divisa a esquiva silhueta nessa lista. É o que acontece com a temática da mulher, quase ausente, a temática queer, a temática explicitamente política, a temática indígena. Isso sim dá o que pensar. Qual a causa desse paradoxo?

Aqueles temas estão na ordem do dia, presidem até assassinatos, mas na lista quase sumiram. Sempre lembrando que a lista é apenas uma amostra e provavelmente insuficiente. Será que não há autores? Ou os editores não se interessam? No momento é difícil saber, por enquanto só podemos especular.

Mas não deixa de ser interessante: a temática da negritude é avassaladora. É bom lembrar que a negritude também é avassaladora no Censo, 56% de declarações voluntárias assumindo os muitos cambiantes da cor são um documento incontornável.

Já para a crítica literária propriamente dita, a constatação é de que estamos vivendo o predomínio do conteúdo. O que se escreve e o que se lê são definidos pelo conteúdo. Quanto à estética, ao trabalho com a forma, aos anseios da vanguarda, ao fermento da experimentação... Tudo isso fica no horizonte do futuro, e assim mesmo, talvez.

Essa hipertrofia do significado, em detrimento do significante, pode estar implicando uma inclinação da literatura mais para o lado do entretenimento, e menos para o lado da arte. Seria um bom desafio tratar de pensar um pouco se esse fenômeno é paralelo à crescente ênfase na biografia do autor, e menos em sua obra.

O palpitante parece ser aquilo que é da intimidade do artista, e não o que ele realiza e que lhe confere a legitimidade de ser artista. Aqui, a contaminação de estratégias da mídia, perita em incensar e derrubar ídolos, pode ser a responsável.

Mas, repita-se, é preciso lembrar que se trata de uma amostra apenas, portanto estas elucubrações permanecem entre parênteses.

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Walnice Nogueira Galvão

Ensaísta e crítica literária, é professora emérita da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo

Monday, August 18, 2025

Tempos do Cólera

"Acabavam de celebrar as bodas de ouro matrimoniais, e não sabiam viver um instante sequer um sem o outro, ou sem pensar um no outro, e o sabiam cada vez menos à medida que recrudescia a velhice. Nem ele nem ela sabiam dizer se essa servidão recíproca se fundava no amor ou na comodidade, mas nunca se haviam feito a pergunta com a mão no peito, porque ambos tinham sempre preferido ignorar a resposta. Tinha ido descobrindo aos poucos a insegurança dos passos do marido, seus transtornos de humor, as fissuras de sua memória, seu costume recente de soluçar durante o sono, mas não os identificou como os sinais inequívocos do óxido final e sim como uma volta feliz à infância. Por isso não o tratava como a um ancião difícil e sim como a um menino senil, e esse engano foi providencial para ambos porque os pôs a salvo da compaixão".

(...)

"Coisa bem diferente teria sido a vida para ambos se tivessem sabido a tempo que era mais fácil contornar as grandes catástrofes matrimoniais do que as misérias minúsculas de cada dia. Mas se alguma coisa haviam aprendido juntos era que a sabedoria nos chega quando já não serve para nada".

Gabriel García Márquez. O Amor nos Tempos do Cólera. Tradução de Antonio Callado.

Monday, August 11, 2025

Friday, August 01, 2025

Barbárie

A questão de saber quem é verdadeira e plenamente um ser humano, com os direitos inalienáveis que isso confere, não é nova, mas se coloca hoje em novos termos que não podem deixar indiferente quem se interessa pela educação.

A questão não é nova. "Bar, bar", diziam os gregos, zombando da forma de falar dos persas. O bárbaro nem mesmo sabe falar corretamente, é grosseiro, selvagem, mais ou menos cruel, sempre pronto a nos invadir. Mas a ideia de barbárie é ainda mais radical: existe barbárie em qualquer situação, encontro, relação entre humanos na qual um nega a humanidade do outro. O bárbaro, aos olhos do "civilizado", é radicalmente outro; ele tem aparência humana, mas se pode duvidar que seja verdadeiramente um homem e, portanto, pode ser tratado como um objeto, eliminado se for incômodo e, com certeza, ser maltratado e reduzido à escravidão. De modo que, por inversão da situação, o "civilizado" trata aquele que considera "bárbaro" com métodos cruéis, sanguinários, indignos de um ser humano e que podem, por sua vez, ser qualificados de bárbaros. Ao considerarmos o outro como um bárbaro, acabamos sempre nos comportando de forma bárbara  torturando, acendendo fogueiras, cortando cabeças, colocando ou lançando bombas, reduzindo à escravidão etc. Aquele que nega a humanidade do outro, rompe o vínculo de pertencimento a um mundo comum e, ao mesmo tempo, coloca a si próprio fora da humanidade: a barbárie é contagiosa.

Educação ou Barbárie? Uma escolha para a sociedade contemporânea. © 2020, Bernard Charlot. Tradução Sandra Pina. Cortez Editora.

Imagem: Gaza City. Omar Al-Qattaa /AFP / Getty Images. Outubro, 2024.

Thursday, July 31, 2025

31 de julho de 2018

Ao contrário do que parecia óbvio, Jair Bolsonaro saiu ileso do Roda Viva. Por ironia do destino, no mesmo dia em que Neymar Júnior virou picadinho poucos minutos depois de lançar seu comercial-desabafo pago pela Gillette.

Duas diferenças entre um e outro: apenas no YouTube do patrocinador, o camisa 10 tem quase 1 milhão de views e cerca de 60 mil likes ou deslikes. Visto que dali o vídeo viralizou, a repercussão necessariamente tem que ser medida em dezenas ou centenas de milhões, e ao redor de todo o planeta.

O Roda Viva dá traço no Ibope toda semana. Boa parte do país sequer recebe o sinal da TV Cultura.

A segunda diferença: a avalanche de críticas a Neymar partiu diretamente das redes sociais. Bolsonaro foi sabatinado pela imprensa chapa branca da eterna província constitucionalista de São Paulo dos Campos de Piratininga.

Se havia alguma dúvida sobre a 'arena' das eleições de outubro, passou da hora de saber que só a internet vai permitir o enfrentamento do discurso do golpe. Ainda que o candidato preferencial deles seja Geraldo Alckmin, a segunda opção, Bolsonaro, tem blindagem garantida. Ao contrário, mesmo os candidatos à esquerda sem qualquer chance, como Manuela, permanecerão amordaçados. Ao golpe pertence tudo quanto de mainstream se avista na comunicação do Brasil. E a ovelha raspa o pelo, mas não perde o vício. 

Outra discussão que deixa de ter sentido, se é que já teve em algum momento, passa por decidir se é bom ou ruim falar mal das pessoas ruins na internet. 'Um Novo Homem Todo Dia' bateu recordes de menções negativas. Por isso, e só por isso, 'Neymar, Gillette e agência' estudam 'reação', como noticiou o UOL, sem perder a oportunidade para o deboche: 'comercial cai mal', diz a manchete. O pelo e o vício, como queríamos demonstrar.

Bolsonaro no Roda Viva? Não foi confrontado. Repetiu o que sempre diz e ninguém ofereceu resposta - ou pergunta - à altura.

Enquanto as redes sociais transformavam a gilete do reizinho em guilhotina, o candidato a führer saiu do estúdio mais vistoso do que entrou. Barba, cabelo e bigode. Quase ninguém viu, mas os tosquiados fomos nós.

Como se não bastasse, ainda se encontra, na própria rede, gente sinceramente admirada com a eficácia da burrice de Jair Bolsonaro. Não é disso que se trata. O discurso totalitário funciona para os convertidos, não passa daí. E só vai amealhar mais adeptos enquanto não encontrar resposta. Embora Bolsonaro, estatisticamente, não seja a principal ameaça, sua ideologia nefasta precisa ser combatida. Assim como as deles, nossas ferramentas estão disponíveis. Hora de usá-las. Feito lâminas.

Tuesday, July 15, 2025

15 de julho de 2019

O 'Pavão Mysteriozo', trollagem explícita comandada pelo Carluxo, parece marcar um ponto de virada para os Bolsonaro. A proposta de fazer Eduardo embaixador nos Estados Unidos tem cara de ir na mesma direção.

Eles não estão falando sério.

(E, se estiverem, não vai fazer grande diferença, num Ministério das Relações Extraterrestres comandado por Ernesto Araújo).

Quer ver? A notícia 'bolsonaresca' de hoje é que o MP do Rio de Janeiro fará um pente fino das contas de campanha do filho Flávio.

Ou seja, em algum momento a casa virá abaixo.

Eles já estão morando 'de favor'.

O Boulos escreveu na Carta Capital: Bolsonaro se confirma como um inédito 'presidente de nicho ou, mais adequado à sua história, um presidente de baixo clero'.

(Procure lembrar alguma iniciativa do núcleo duro em torno deles que tenha gerado algum resultado nas últimas semanas).

Isso tudo, evidentemente, não nos autoriza a qualquer otimismo. Antes, muito pelo contrário. Pois o desmonte sistemático do Estado brasileiro segue célere e diário, sem pausas para o fim de semana.

A pergunta passa a ser: se o projeto vendido em campanha está sendo cumprido ponto a ponto, sem que o dedo do presidente se faça notar em nenhuma das principais decisões, quem, afinal, está governando este país?

Jair se confirma como a Rainha da Inglaterra da Família Surreal brasileira. Mas não nos falta governo. Um governo terrivelmente cumpridor de seus compromissos.

Quem tem a voz de comando?

Saturday, July 12, 2025

12 de julho de 2016

O quiproquó do apoio ao DEM para eleger o sucessor de Eduardo Cunha na Câmara pode ser indicativo de algo que transcende a ansiedade pré-histérica da militância petista e o proverbial oportunismo do PSOL: o tempo da coalizão, simplesmente, acabou. Não há, na Esquerda, outro futuro a não ser um candidato "que não votou no Golpe".

Deixa eu dizer um lance aqui. Desconfio que não conheço alguém mais favorável que eu aos acordos, pragmatismos e idas e vindas do período lulodilmista. Realpolitik? Não tenho nada contra. Pode conferir nos meus posts dos últimos três anos. Mas já não é mais disso que se trata.

Porque aconteceu de irmos longe demais no enfrentamento. E não me refiro a urgências de "refundação" do Partido dos Trabalhadores, essa rematada tolice. O ano e meio passadas as eleições de 2014 está sendo devastador. Nem é muito complicado. O Congresso Nacional apenas derreteu. Fim da linha. Sem retorno.

Se Dilma vencer no Senado, o que é perfeitamente possível, a despeito da bola de cristal viciada dos analistas pessimistas*, dá no mesmo. E também, aqui, não está em jogo a hipótese 'Erundininha Toda Pura', chanchada vintage de mau gosto. Claro que haverá de haver composição pluripartidária! O que não tem jeito de juntar de novo são os trapos do peemedebismo e do lulismo.

E não, não foi o coração valente da Dilma que nos levou a isso. Nem a outra Dilma, a Dilma execrada pelos engenheiros de obras prontas, aquela gerentona incompetente que odeia a política. A culpa é toda do tal do "devir histórico". A Direita é tão ou mais responsável pelo presente estado de coisas. Por ter partido pro "é agora ou nunca". Por parecer uma locomotiva sem maquinista de filme de guerra, puxando quinhentos vagões em direção à ponte dinamitada.

A Direita ameçou a Democracia de morte. Este ato de negação principial acelerou a decomposição já inexorável. O buraco é mais embaixo. Essa encrenca vem de longe.

A Democracia, porém, é inegociável. Ou não é Democracia. O impeachment como Golpe é inadmissível. E o que não se admite, não pode ser admitido.

Nem acho que estamos preparados para tanto. É bem capaz de dar merda, reconhecer a possibilidade não tem nada que ver com pessimismo. Não está no âmbito da Ética, da Retórica, tampouco da Estética e nem mesmo da Política. É do campo da Lógica. Tem momentos que o jogo se define. Tem horas que a fila anda. E a fila andou.

* Oxímoro à vista: ou é analista, ou é pessimista. Ou é analista ou é otimista. Pelamôr! :p

Monday, June 30, 2025

30 de junho de 2015

NO COUNTRY FOR OLD MEN

Tenho 52 anos de idade e já vi o Brasil em situações muito  —  mas, muito  —  piores. E, no entanto, ele se moveu.

Tenho 52 anos e nunca vi o jornalismo brasileiro num buraco tão fundo.

Não há Tribunal de Inquisição que faça o Sol voltar a girar em torno da Terra quando os meios técnicos se transformam.

Assim como a Indústria Fonográfica nos anos 90, o business de notícias em seus moldes século XX está em vias de desaparecimento.

Qualquer orelha de manual de psicanálise explica o catastrofismo de nossa grande mídia: chama-se "projeção".

Querem vender um Dilúvio, mas, na verdade, trata-se apenas de um concorridíssimo abraço de afogados.

Thursday, June 19, 2025

20 de junho de 2015

Aqui vai um vídeo que reflete - com profundidade - sobre os quocientes de preconceito embutidos nos nossos palavrões. Quem me indicou foi um amigo querido que sabe manter a flexibilidade do pensamento. Que sabe se divertir com a ideia de que "uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa".

Sobre o radialista Ricardo Boechat, a coisa é que até as pedras caídas da Muralha de Jericó perceberam que o estado permanentemente exaltado de Malafaia denota desejos reprimidos. Malafaia sempre esteve à procura de algo que satisfaça sua excitação.

Bem sabemos que a rôla "não é solução para tudo" e que é uma enorme bobagem pretender que "todo homofóbico é um homossexual enrustido".

Acontece que aconteceu de um radialista mainstream, de perfil masculino normalopata, desses que fazem piadas falocentradas, tirar da garganta de todo mundo o que andava há tempos querendo sair. 

Num mundo ideal não mandaremos ninguém tomar no... pois isso é homofóbico, nem diremos a alguém "seu filho da..." pois é misógino; não desabafaremos porque "a coisa está preta", por ser racista, nem usaremos mais o termo "judiação", por suas conotações anti-semitas.

Nesse possível futuro tempo da delicadeza, não precisaremos da ajuda de um típico macho alfa branco como Ricardo Boechat para nos representar, pois vendilhões como Silas Malafaia, simplesmente, terão sido expulsos do templo.

Por enquanto, é necessário registrar que, antes de enfiar a rôla no discurso, Boechat se valeu de vocabulário amplo: idiota, paspalhão, pilantra, tomador de grana de fiel, explorador da fé alheia, otário, homofóbico, figura execrável, horrorosa, charlatão.

Quanto nos ofendem as dinâmicas da comunicação de massa? Quanto nos proibimos de rir do desnudamento do charlatão, na praça do mercado e pelas normas do mercado? Quanto negamos o poder impuro da rua? Da indústria cultural? E quanto nos permitimos desfrutar das vitórias provisórias?

"Malafaia, vá procurar uma rôla", apesar de infantiloide, misógino e patriarcal, expôs o farisaísmo do pastor. “Você usa o nome de Deus para tomar dinheiro de fiéis. Você é tomador de grana, você e muito outros”. Boechat construiu seu discurso em seus próprios termos. Conseguiu coerência entre a forma e o conteúdo. Nesse processo de individuação, representou milhões de pessoas. Aceitemos ou não, barrou o sermão de Malafaia. E isso é o que tivemos para hoje.

Friday, May 30, 2025

Efeito 'tororó' barra cachês milionários

Efeito 'tororó' de Anitta barra cachês milionários de prefeituras

XICO SÁ para o ICL Notícias / 30_05_2025

A Justiça do Mato Grosso decidiu esta semana que o cantor Leonardo terá que devolver R$ 300 mil aos cofres da Prefeitura de Gaúcha do Norte, a 595 km de Cuiabá. O sertanejo recebeu, há um ano, R$ 750 mil para um show no município. O valor, segundo o Ministério Público Estadual (MPE), foi superfaturado.

Por mais bizarro que pareça, os cachês milionários — com dinheiro público — só começaram a ser barrados no Brasil depois que Zé Neto (da dupla com Cristiano) atacou a cantora Anitta: "A gente não precisa fazer tatuagem no 'toba' para mostrar se a gente está bem ou mal. A gente simplesmente vem aqui e canta, e o Brasil inteiro canta com a gente".

Para bajular Jair Bolsonaro, em plena campanha eleitoral à reeleição, Zé Neto ainda repetiu a tese do presidente sobre a 'mamata da Lei Rouanet'.

Anitta reagiu com humor à crítica sobre a tatuagem no 'tororó' — como ela prefere definir na sua lição informal de anatomia —, mas acabou falando também sobre esquemas de desvios de verbas municipais por intermédio de cachês superfaturados.

A produtora dos seus shows havia recebido propostas do gênero. "Falei não", disse ela.

A partir desse momento, o Ministério Público de vários Estados iniciou uma série de investigações sobre shows com valores suspeitos. Graças ao 'efeito tororó', o assunto nunca mais saiu da lupa dos procuradores.

O primeiro escândalo foi descoberto em Roraima, em 2022. A prefeitura de São Luiz, município com 8.232 habitantes, contratou o cantor Gusttavo Lima por R$ 800 mil.

Depois de muita polêmica e investigação do MPE, o mesmo cantor teve um contrato de R$ 1,2 milhão cancelado em Conceição do Mato Dentro, em Minas Gerais.

Outro inquérito foi aberto na cidade de Magé, no Rio de Janeiro, onde Lima faria mais um show do milhão. Na Bahia, o Tribunal de Justiça cancelou uma apresentação na Festa da Banana de Teolândia — o cachê seria de R$ 704 mil.

A decisão levou a prefeita Rosa Batinga (PP) ao choro. "A minha dor é muito grande, vocês não têm ideia. Eu queria estar hoje, de vermelho e preto, arrumada para o Embaixador (apelido de Gusttavo Lima)", disse, em lágrimas.

Conhecido informalmente como 'CPI do Sertanejo', o escândalo provocou debate no país inteiro. Em Alagoas, o MP pediu cancelamento de uma apresentação do ídolo popular Wesley Safadão que levaria R$ 600 mil da prefeitura de Viçosa. No entendimento dos procuradores, esse gasto com as festas não deveria ultrapassar o limite de R$ 100.

Acossado pela maioria das investigações, Gusttavo Lima chorou, em um live no Instagram. "Sou um cara que faz poucos shows de prefeitura. E quando a gente faz algum, a gente é massacrado como bandido, como se fosse um ladrão que estivesse roubando dinheiro público. E não é isso".

No ano passado, reportagem de Deborah Magagna e Chico Alves no ICL Notícias revelou que shows de Gusttavo Lima consumiam até 50% de orçamento de cultura de pequenas cidades.

O senador Flávio Bolsonaro, filho do presidente, prestou solidariedade ao cantor. "Fique firme, meu irmão! Você é um cara do bem! Deus proverá", escreveu nas redes sociais. A essa altura, o "efeito tororó" havia provocado o cancelamento de 40 shows.

A bendita tatuagem — com a palavra Love em destaque — tem feito um bem danado aos cofres públicos.