O MPL convoca manifestação toda vez que se anuncia aumento de tarifa em São Paulo. Já fazia isso desde 2000, quando um embrião do grupo foi criado no Fórum Mundial Social em Porto Alegre. Acaba de criar 'evento' no Facebook, como mostra o print acima (ou abaixo). Pouco ou nada mudou para o movimento desde seus primórdios, apesar de até hoje ter seu nome associado a grandes acontecimentos da vida nacional. E isso não é contraditório, ao contrário do que possa parecer, como tento demonstrar a seguir.
Em 2014, a Folha publicou um resumo dos sete atos que aconteceram entre os dias 6 e 19 de junho de 2013 em São Paulo.
É nítido: os atos 1, 2 e 3 são comandados pelo MPL e quem toma parte deles vai às ruas contra o aumento da tarifa e em defesa da mobilidade urbana.
O ato de número 4 é 'sequestrado' pelo Choque. A selvageria policial extrapola, sai do controle. Cria-se ali um fato político onde os manifestantes entram como vítimas, não mais como protagonistas.
O quinto ato, apesar de convocado pelo MPL, vê chegar uma multidão heterogênea e difusa, nitidamente 'descolada' das pautas originais. Não serão registrados 'atos de vandalismo', ao contrário das manifestações ocorridas nos dias anteriores.
Nos atos 6 e 7, todo mundo que acompanhou à época percebeu, sequer se notava a presença do MPL. A Direita já havia tomado posse.
O papel do MPL nas manifestações de junho de 2013 em São Paulo, portanto, foi secundário. Os atos que o grupo efetivamente liderou serviram, quando muito, de estopim para algo que estava latente. Atribuir qualquer significado relevante ao MPL no que se viu depois de junho de 2013 no Brasil é mais ou menos como avaliar que o estudante sérvio que matou a tiros o arquiduque do Império Austro-Húngaro é o responsável pela Primeira Guerra Mundial.
Parte da esquerda não-petista insiste numa leitura 'não conservadora' das manifestações que se espalharam pelo Brasil naqueles meses. Em São Paulo, é farta a documentação na imprensa e nas redes sociais, aconteceram dois fenômenos distintos. O MPL foi 3 vezes à rua para lutar pela mobilidade urbana e pela 'descatracalização da vida'. Os meninos e meninas apanharam tanto da PM que geraram na população de classe média um sentimento de revolta. Esse sentimento, quem sabe, levou milhares de pessoas ao Largo da Batata no dia 17. Dia 17 já é parte de outro fenômeno. E neste segundo instante, para onde quer que se dirija o olhar, vai aparecer, sem sombra de dúvida, a Direita tomando posse do 'movimento'. O que acontece a partir dali tem clara ligação com o que vinha acontecendo desde o 'Mensalão' e forma um todo coeso com o Golpe de 2016 e com a ascensão da Extrema Direita. Uma retomada do controle do Estado pelas oligarquias que havia momentaneamente diminuído desde a Constituição de 1988.
O MPL, desde antes, e desde então, é um movimento de pequenas proporções. Não se transformou com o aumento de visibilidade conquistado em 2013. Continuou, e continua, na sua vidinha de pular catraca e quebrar vidraça. São bons no que fazem. Afinal, mobilidade urbana é um tema fundamental na agenda dos direitos cidadãos. Mas 2013 e o MPL têm relação apenas de contiguidade. Jamais de causa e efeito.
Leia a seguir o resumo feito pela Folha em 2014:
RELEMBRE EM 7 ATOS OS PROTESTOS QUE PARARAM SP EM JUNHO DE 2013
JOÃO WAINER - EDITOR DA 'TV FOLHA' E DIRETOR DO DOCUMENTÁRIO 'JUNHO'
ATOS 1, 2 E 3
Com exceção de quem ficou preso no trânsito do centro e da marginal Pinheiros nos dias 6 e 7 de junho, quando ocorreram o primeiro e o segundo ato contra o aumento da tarifa, quase ninguém percebeu a conexão entre o que começava em São Paulo e o que já havia acontecido em Florianópolis e em Salvador.
Nas duas cidades, o MPL (Movimento Passe Livre) conseguiu reverter o aumento das passagens de ônibus com milhares de pessoas nas ruas. Em São Paulo, foi preciso uma onda de vandalismo, protagonizada por anarcopunks (com depredações de ônibus e de agências bancárias), para que o governo, a imprensa e a população percebessem os manifestantes. Isso ocorreu no 3.º ato, no dia 11.
A reação da mídia e do governo no dia seguinte foi similar, condenando o vandalismo dos manifestantes. O governador Geraldo Alckmin (PSDB), que estava em Paris com o prefeito Fernando Haddad (PT), afirmou que a ação de "baderneiros" destruindo o patrimônio era "intolerável".
A Folha e o "Estado de S. Paulo" publicaram editoriais pedindo a retomada da Paulista. Nas TVs, opiniões raivosas de Arnaldo Jabor, da Globo, e do apresentador José Luiz Datena, da Band, atiçaram a PM. A cena do policial Wanderlei Vignoli sangrando foi a gota d'água.
No dia 12, a corporação afirmou que os manifestantes não se sentiriam à vontade para se manifestar no ato marcado para o dia seguinte.
ATO 4
A promessa da PM foi cumprida. Na quinta-feira, dia 13, antes de o 4.º Ato Contra o Aumento da Tarifa começar, cerca de 50 manifestantes já haviam sido presos - muitos deles por portarem vinagre, que, além de temperar a salada, serviria para amenizar os efeitos do gás lacrimogêneo.
O que se viu em seguida foi uma ação desastrada da PM, que iniciou um confronto na esquina das ruas Maria Antônia e da Consolação, atirando bombas de gás lacrimogêneo e balas de borracha em manifestantes, jornalistas e pedestres.
O colunista da Folha Elio Gaspari escreveu em artigo, no dia seguinte: "Quem acompanhou [...] pode assegurar: os distúrbios de ontem começaram às 19:10, pela ação da polícia, mais precisamente por um grupo de uns 20 homens da Tropa de Choque, com suas fardas cinzentas, que, a olho nu, chegaram com esse propósito".
Os disparos de bala de borracha no olho que a repórter da "TV Folha" Giuliana Vallone e o fotógrafo Sérgio Silva levaram foram um tiro no pé da própria Polícia Militar. A imagem dos jornalistas feridos correu o mundo e provocou uma reação de imediato repúdio da opinião pública.
As redes sociais ferveram como nunca antes, e a imprensa engrossou o coro dos descontentes. Todos denunciavam agressões e cobravam punição.
ATO 5
E foi. Na segunda, dia 17, eram milhares de pessoas nas ruas. Na concentração, no largo da Batata, o Datafolha contou 65 mil, mas, no decorrer da passeata, outros milhares se juntaram aos primeiros, formando uma multidão gigantesca nas ruas.
Em um certo momento, a passeata se dividiu em três blocos. Um foi para o Palácio dos Bandeirantes, outro para a avenida Paulista e o terceiro para a avenida Luiz Carlos Berrini. Houve tentativa de invasão ao palácio do governo aos gritos de "ei, Geraldo, seu governo vai cair".
No Rio, manifestantes atearam fogo na porta da Assembleia Legislativa; em Belo Horizonte, houve confronto com policiais; brasileiros no exterior foram até suas embaixadas para apoiar o movimento; centenas de cidades se rebelaram e foram às ruas protestar.
A vitória da seleção brasileira de futebol na Copa das Confederações, que ocorria paralelamente às manifestações, em vez de tirar o foco do que acontecia nas ruas, fez com que protestos contra a Fifa e a Copa de 2014 entrassem definitivamente na pauta dos manifestantes. Nascia o atormentador grito de "não vai ter Copa".
ATO 6
No dia 18, terça-feira, a manifestação se transformou em uma revolta popular. Como em uma batalha medieval, manifestantes atacaram a sede da Prefeitura de São Paulo. Na entrada lateral, tentaram derrubar a porta com um poste arrancado da rua. Enquanto isso, no hall principal, poucos guardas-civis lutavam bravamente para impedir que a multidão em fúria tomasse conta do prédio.
A PM, ainda sob impacto das fortes críticas que sofreu após atos de violência, desapareceu. O recado foi claro: "Vocês reclamam que a polícia é violenta, então vamos ver como é sem polícia". Naquela noite, marginais se aproveitaram da ausência policial e saquearam lojas das ruas São Bento e Direita. Pessoas corriam carregando TVs de plasma, brinquedos e até geladeiras nas costas. A PM só deu as caras horas depois da confusão.
ATO 7
Na quarta (19), o 7.º Ato Contra o Aumento da Tarifa, que deveria ser uma comemoração, foi o mais confuso e talvez o mais significativo do momento que o país esta vivendo. Com o aumento da tarifa revogado, abriu-se espaço para as mais diversas reivindicações em todos os espectros políticos, da extrema esquerda até a extrema direita.
Segundo o cientista político Marcos Nobre, o que aconteceu no dia 19 foi diferente de qualquer outra grande manifestação já ocorrida no país. "Até junho de 2013, as pessoas iam para as ruas sempre por um objetivo comum, como foram as Diretas ou o impeachment de Collor. O que se viu naquele dia foi cada um com a sua reivindicação e com opiniões muitas vezes incompatíveis. Obviamente, isso não viria sem conflito."